Podemos assistir a dois candidatos a proclamarem-se vencedores na mesma noite eleitoral? Ficarem por contabilizar milhões de votos? Ou vir a presenciar uma guerra jurídica acesa nos tribunais, com alegações de fraude eleitoral? Sim, na América de 2020, com Donald Trump como candidato presidencial, a única certeza que o mundo pode ter para logo à noite é a total incerteza.
Basta que assistamos a resultados próximos em dois ou três estados decisivos, ou uma margem de vitória pequena nalguns dos estados que contam os votos por correspondência mais lentamente, para que tal desfecho possa acontecer esta noite.
Joe Biden segue à frente nas sondagens nacionais, com uma média de 89 hipótese em 100 de ganhar, contra 10 em 100 do incumbente Donald Trump (como estima o site 538). Mas, ainda assim, ninguém espera uma noite eleitoral tranquila. Muito pelo contrário.
A hipótese de uma noite eleitoral inconclusiva e de dias agitados a seguir não é um mero cenário hipotético: centenas de advogados dos dois lados trabalham já nisso há várias semanas e, em Washington, há quem antecipe um panorama pós eleitoral caótico, com um impasse se possa prolongar até dezembro, ou mesmo até 20 de janeiro, data da tomada de posse. E, nas grandes cidades como Nova Iorque ou Washington, muitas lojas e serviços públicos entaiparam portas e janelas, antecipando conflitos e violência nas ruas.
Será que ele sai?
Não seria a primeira vez que um impasse arrastaria o desfecho final das eleições até bem depois do dia 3 de novembro. Aconteceu algumas vezes na história, a mais recente das quais foi há 20 anos, na corrida entre George W. Bush e Al Gore, quando os Estados Unidos mergulharam em 36 dias de turbulência devido à disputa dos resultados na Florida. Depois de várias recontagens e uma disputa legal renhida que chegou ao Supremo, Bush foi declarado vencedor com uma vantagem de apenas 537 votos.
Donald Trump tem, em diversas ocasiões, deixado em aberto a hipótese de não aceitar o resultado eleitoral e de não garantir uma transição pacífica de poder. Algo nunca visto nos Estados Unidos, onde o sistema eleitoral pouco mudou desde que foi fundado. Já em Julho, numa entrevista à Fox, o Presidente dos Estados Unidos recusou-se a garantir que aceitaria o resultado das eleições presidenciais caso fosse derrotado por Joe Biden. “Tenho de ver. Não vou apenas dizer que sim. Também não vou dizer que não. O que posso dizer é que vou decidir quando chegar a altura. Vou mantê-lo em suspense”, respondeu ao jornalista Chris Wallace.
Transição pacífica? “Tenho de ver. Não vou apenas dizer que sim. Também não vou dizer que não. O que posso dizer é que vou decidir quando chegar a altura. Vou mantê-lo em suspense”, diz Trump
Mais recentemente, Donald Trump tem voltado a deixar essa hipótese no ar. Numa conferência de imprensa em Setembro, questionado sobre se comprometia com uma transição pacífica, respondeu que seria preciso “esperar para ver o que acontece”.
Lawrence Douglas, professor de Direito Constitucional na Universidade de Amherst, escreveu em Maio deste ano um livro especificamente sobre este tema, com o sugestivo título “Will He Go? Trump and the Looming Election Meltdown in 2020” (Tradução livre: “Será que Ele Sai? Trump e o colapso eleitoral iminente”). Elenca as várias hipóteses legais com que Donald Trump pode impugnar estas eleições e lançar o caos. Para o especialista, é simplesmente impossível de imaginar que Donald Trump aceite uma derrota eleitoral e saia sem levantar ondas, uma vez que todo o seu comportamento até aqui tem sido o de não reconhecer a legitimidade de uma derrota, antecipando já cenários de conspiração e fraude eleitoral. “O problema é que a Constituição americana não garante uma a transição pacífica de poder, mas sim pressupõe-na”, explica Douglas.
Já em 2016, apesar de ter sido eleito e de Hillary Clinton ter reconhecido a derrota logo nessa noite, Donald Trump alegou fraude eleitoral. Tentou justificar com o voto ilegal de milhões de imigrantes ilegais o facto de não ter a maioria no voto popular –onde a sua adversária saiu vencedora, apesar da maioria que Trump conseguiu no Colégio Eleitoral, que elege o presidente dos Estados Unidos. Algo que nunca foi considerado plausível nem veio a ser comprovado pelas autoridades.
O argumento do voto antecipado
O voto antecipado, permitido em pessoa e por correspondência, vem adensar o caos, sobretudo neste ano de 2020 em que, por causa da pandemia, o recurso a estas duas alternativas bateu records. Na segunda-feira, já mais de 92 milhões de americanos tinham votado – as “urnas” abriram já no início de setembro – e estima-se que, este ano, pelo menos 100 milhões de eleitores exerçam o seu direito de voto antes do dia das eleições.
SABIA QUE…
Mais votos não garantem a vitória. Cinco Presidentes norte-americanos foram eleitos sem ganharem no voto popular. Trump e George W. Bush foram dois deles
Pela primeira vez na história dos EUA, a maioria dos votos serão exercidos antes do dia oficial das eleições (em 2016 votaram 138,8 milhões de habitantes). E com elevada probabilidade, será batido o record de participação, que é sempre relativamente baixo – desde o final dos anos 60 sempre abaixo dos 60% (a participação mais elevada neste período foi em 2004, na primeira eleição de Obama, com 57,1% de participação eleitoral).
Nas contas de Trump, o voto antecipado representa uma ameaça. Historicamente, é um recurso mais usado em grandes centros urbanos mais populosos, e esta contagem tende a beneficiar os democratas. Sobretudo neste ano pandémico, sendo certo que os democratas levam o perigo do vírus mais a sério. Daí que os republicanos acreditem que quanto maior a abstenção, melhor para Trump. E quanto mais votos antecipados, pior para ele. Por isso, a sua narrativa tem sido, desde há longos meses, a de lançar suspeições várias sobre este sistema eleitoral que, segundo todos os especialistas, não têm qualquer fundamento.
Pela primeira vez em 40 anos, o departamento de justiça dos Estados Unidos pôs de parte a máxima de não-interferência nas eleições e autorizou investigações sobre suspeitas de fraude eleitoral antes de os votos serem contabilizados e certificados. Algo que Trump poderá usar em seu benefício.
Com tudo isto, o candidato Donald Trump tem exigido que o resultado seja conhecido logo na noite de 3 de dezembro, pondo em causa milhões de votos que podem não estar ainda contabilizados nessa noite.
Quando, em Julho, Donald Trump sugeriu adiar as eleições de novembro, algo que não teve suporte político, nesse mesmo dia adiantou, num tuite, um cenário que ninguém levou a sério, mas que agora está em cima da mesa. “Os resultados das eleições devem ser conhecidos na noite da eleição, e não dias, meses ou mesmo anos mais tarde!”, escreveu.
Os estados decisivos
Numa eleição em que existem tantos votos antecipados, e uma disputa que se adivinha em torno deles, a velocidade da contagem será pois determinante. Mas, para complicar as coisas, nem todos os estados estão apetrechados com sistemas de contagem igualmente rápidos.
Como a VISÃO explicou aqui, dos seis estados que são tradicionalmente considerados “swing states” (onde não há uma predominância estável de um partido e o voto costuma oscilar entre republicanos e democratas), três permitem uma contagem e verificação rápidas – Florida, a Carolina da Norte e o Arizona – e outros três são mais lentos a contabilizar os votos – Pensilvânia, o Wisconsin e o Michigan.
Nestes estados mais lentos, todos fundamentais nas contas da vitória, a contagem poderá arrastar-se por vários dias. Mas antes disso, Trump poderá antecipar-se e declarar-se vencedor nestes estados apenas com os votos presenciais contabilizados (onde os republicanos levam vantagem). Uma mensagem que poderá ser empolada e amplificada por estações como a Fox News, o seu megafone favorito além do Twitter.
A Pensilvânia pode, em 2020, ser o campo de batalha que a Florida foi em 2000. Com um peso substancial no Colégio Eleitoral, a disputa neste estado está já renhida e já chegou aos tribunais. Uma decisão do Supremo Tribunal da Pensilvânia permitiu prolongar por mais três dias o prazo para a contagem dos votos por correspondência, admitindo a contagem dos boletins que forem recebidos até sexta-feira, dia 6 de novembro (tendo em conta eventuais atrasos nos correios).
Contestada pelos republicanos, a decisão foi na passada quarta-feira confirmada pelo Supremo Tribunal dos Estados Unidos, mas ainda sem a intervenção da juíza conservadora Amy Coney Barrett, nomeada por Trump em cima das eleições, que se manteve à margem alegando não ter tido tempo de estudar o processo. Porém, o tribunal deixou uma nota dizendo que poderia reavaliar a decisão mais tarde, depois das eleições. E ontem Trump já deixou bem claro que tem uma equipa de advogados pronta para travar a contagem na Pensilvânia para lá do dia das eleições.
SABIA QUE…
O Texas, republicano desde 1980, pode ser uma das supresas da noite. Este ano as sondagens dão uma corrida renhida e o voto antecipado, que tende a favorecer os democratas, foi enorme
Se ainda assim, depois de fechada a contagem final de todos os votos, presenciais ou por correspondência, Trump perder nestes estados lentos, poderá ainda assim exigir uma recontagem tal como aconteceu em 2000. Há quatro anos, a sua vantagem sobre Hillary Clinton foi aqui de apenas 80 mil votos.
Para aumentar a confusão, nestes três estados lentos onde a contagem será demorada – Pensilvânia, Wisconsin e Michigan – os governadores são do partido Democrata e acusam o partido de Trump de má fé, mas são os republicanos que dominam as duas câmaras. Uma lei de 1845, ainda em vigor, estipula que em caso de um estado falhar a decisão (ou seja, não ter uma conclusão antes de 8 de dezembro), a Câmara possa decidir apoiar um dos candidatos. Ou seja, num cenário caótico, podemos ter mensagens de sentidos diferentes enviados para o Congresso pelos governadores e pelos senados sobre quem venceu as eleições em cada um destes estados.
Com tudo isto em cima da mesa, na prática, quando chegar a data da certificação dos resultados a 6 de janeiro, as duas fações podem ainda estar envoltas numa complexa disputa jurídica. O cenário mais caótico, quase impensável, é aquele que a revista Atlantic, na sua última edição, coloca em cima da mesa: os dois homens – Biden e Trump – prepararem-se para aparecer para o juramento da tomada de posse no dia 20 de janeiro.
Tudo indica que apenas uma vitória esmagadora de Biden em todas as frentes logo na noite eleitoral possa impedir um impasse. Mas para isso será preciso uma vaga azul inequívoca: manter todos os estados que Hillary ganhou em 2016, conquistar imediatamente a Florida, sem a qual Trump tem poucas hipóteses, e o ideal seria ganhar bastiões que sempre foram republicanos, como o Texas (desde 1990 com uma maioria republicana nas eleições presidenciais) ou a Geórgia (desde 1996 com uma maioria republicana), mas onde este ano a corrida está muito mais renhida do que é habitual.
SABIA QUE…
O Ohio acertou em todos os Presidentes desde 1964. E, falhando o Ohio, nenhum presidente republicano foi eleito.
Quem ganhará o Ohio, é também outra questão que levantará suspense. É que este “swing state” desde 1980, que os republicanos conquistaram em 2016, e que este ano está empatado nas sondagens, só falhou por duas vezes na história das eleições americanas os resultados presidenciais, e acertou em todos os Presidentes desde 1964. E, falhando o Ohio, nenhum presidente republicano foi eleito.
Mas prognósticos, desta vez mais do que nunca, só mesmo depois do jogo. E este jogo pode ter um prolongamento extraordinariamente longo…