Vai ser um dos folhetins mais mediáticos da rentrée judicial.
Mas continuará sem fim à vista, pelo menos por mais algum tempo. Desencadeada em maio, numa ação conjunta do Ministério Público, da GNR e da Inspeção Tributária de Braga, a denominada Operação Monte Branco levou à detenção do gestor suíço Michel Canals, antigo quadro da UBS, e de Nicolas Figueiredo e José Pinto, seus sócios na Akoya Asset Management, com sede em Genebra. Francisco Canas, alegado cúmplice do esquema de branqueamento de capitais e fraude fiscal através daquela sociedade gestora de fortunas, também foi preso. Ricardo Arcos, antigo financeiro da UBS em Lisboa, é outra das pontas. Detido e libertado sob caução, estava à frente da ArcoFinance, empresa suíça que utilizaria métodos idênticos aos da Akoya.
As notícias sobre o âmbito da investigação provocaram, desde logo, uma corrida sem freio à regularização tributária de capitais depositados no estrangeiro, originando uma receita fiscal de 259 milhões de euros. Admite-se, porém, que este é um dos casos com a cauda à vista e gato escondido… lá fora. “Nas últimas semanas entraram malas de dinheiro em Portugal.
Dinheiro que havia saído ilegalmente passou por cá, foi amnistiado, pagou imposto e voltou, quase todo, a sair. Sem cheiro nem mácula, uma limpeza”, escreveu Pedro Santos Guerreiro, no Jornal de Negócios, considerando que a culpa ficará “arquivada no esquecimento do sistema” com a cumplicidade do Estado.
Os clientes de Canals seriam empresários, políticos, autarcas, futebolistas e, talvez em maior número, industriais habituados a desviar dinheiro dos balancetes das empresa para fins pessoais, soube a VISÃO.
A “especial complexidade” do processo Monte Branco levou, entretanto, o MP a enviar uma carta aos advogados dos cinco arguidos conhecidos informando-os da necessidade de prolongar as investigações por mais uns meses. As perícias relativas à documentação e ficheiros informáticos apreendidos em diversas buscas a escritórios de advogados constituem uma das razões. Mas há outras. A VISÃO compilou oito histórias que trazem alguma luz à face oculta deste processo e de alguns dos seus protagonistas.
1 – DUARTE LIMA, OS CHEQUES E AS CONTAS
Michel Canals foi o gestor de conta de Duarte Lima na UBS. Conhecem-se desde os anos 90, mas a relação não acabou aí.
Ouvido duas vezes pelo Ministério Público no âmbito das averiguações do caso Monte Branco, o advogado acusado em dois processos separados por um oceano (morte de Rosalina Ribeiro, no Brasil, e alegada fraude no caso BPN), falou das suas relações com a Akoya Asset Management, a sociedade gestora de fortunas, de Canals, que, a troco de uma comissão, abriu, pelo menos, uma conta no estrangeiro em nome do ex-deputado do PSD. Atualmente em prisão domiciliária, Lima terá admitido aos investigadores a entrega, através de interposta pessoa, de dois cheques relacionados com o crédito do BPN ao Fundo Homeland de 2 milhões de euros a Francisco Canas (“Zé das Medalhas”). Esse valor terá sido posteriormente aplicado no exterior, no âmbito dos esquemas da Akoya. Francisco Canas, dono de uma loja de troféus na Rua do Ouro, em Lisboa, é um dos elementos relacionado com a rede suíça de Canals e encontra-se detido preventivamente. Lima terá ainda consentiu o acesso do MP a contas bancárias em seu nome registadas no estrangeiro, permitindo assim à investigação ganhar um tempo que habitualmente se perde com cartas rogatórias, sem garantias de sucesso.
2 – OS ENCONTROS NO RITZ
O local preferido de Michel Canals para os seus encontros com clientes ou potenciais investidores era o Hotel Ritz, em Lisboa.
Duarte Lima e outros políticos iam lá.
Jogadores de futebol de topo idem. Pelo menos numa ocasião, também Alexandre Soares dos Santos foi visto em conversas com Canals, naquela unidade hoteleira de luxo. Segundo o presidente do Conselho de Administração do grupo Jerónimo Martins, os encontros ocorreram, sem sombra de pecado, no tempo em que o gestor ainda estava na banca suíça. “Conheci o senhor Michel Canals no final dos anos 90, no âmbito do relacionamento que o Grupo Jerónimo Martins manteve com a UBS, à semelhança, aliás, dos encontros periódicos que mantivemos e mantemos com diversos bancos de investimento internacionais que nos procuram”, esclarece o dono da cadeia de supermercados Pingo Doce. Soares dos Santos, que não é visado nas investigações relacionadas com o gestor suíço, confirmou à VISÃO ter-se encontrado com Canals “várias vezes”, mas nega qualquer relação pessoal ou do grupo a que preside com a Akoya. Segundo diz, as “reuniões regulares” com a UBS, via Canals, cessaram em meados da década passada.
3 – ANA BRUNO E O TELEFONEMA DE CANALS
Detido na manhã de 17 de maio num quarto de hotel, no Porto, Michel Canals terá tido autorização para efetuar um único telefonema. E esse foi para Ana Bruno.
“Fui, de facto, contactada pelo senhor Canals aquando da sua detenção em Portugal “, confirmou a própria à VISÃO. Dois elementos do seu escritório ter-se-ão então deslocado à unidade hoteleira da Invicta para conhecer os motivos da prisão do suíço e abandonado o local sem que se constituíssem advogados no processo, mas Ana Bruno desmente parcialmente a versão. “Não sabendo, à data do referido contacto, a razão do mesmo, interpretei-o como um pedido de auxílio vindo de um cidadão estrangeiro em vias de ser detido pela polícia para interrogatório judicial”, refere, por escrito. Ana Bruno assume ter “indicado o nome de um colega de escritório para averiguar o que se passou. Daí a deslocação do mesmo ao Porto”, explicou à VISÃO, recusando, porém, qualquer ligação da sua sociedade ao gestor suíço.
“Apesar dos contactos no dia da detenção, nem eu nem qualquer advogado do meu escritório alguma vez patrocinou o senhor Canals”, refere. Uma dúvida permanece, porém: em que moldes, e com que justificação, Canals foi autorizado a telefonar para Ana Bruno no momento da detenção? Interrogado no dia seguinte por Carlos Alexandre, juiz de instrução criminal, Canals tinha a defendê-lo o advogado Nuno Casanova, do escritório Uría MenéndezProença de Carvalho, em representação de Godinho de Matos. Conhecido maçon, advogado de Armando Vara no Face Oculta e de Luís Horta e Costa no caso Portucale, Godinho de Matos também abandonou pouco depois a defesa de Canals por motivos que o colega Casanova se recusou a esclarecer à VISÃO. O gestor suíço, diga-se, é visado noutros processos, relacionados com o caso da Herança Feteira, conduzidos por Eduarda Proença de Carvalho, do mesmo escritório, em representação de vários herdeiros do milionário de Vieira de Leiria. Henrique Salinas, sócio da CCA (Carlos Cruz Advogados), é, desde junho, o advogado de Michel Canals.
4 – CANALS E RICARDO CASTRO SUBSTITUÍDOS
Apesar de estar detido há quase cinco meses em Portugal, só no dia 7 de agosto Canals foi afastado do cargo de administrador do fundo de investimento que vai gerir o novo aeroporto internacional de Berlim-Brandenburgo. O suíço foi substituído por Monika Reist, sua sócia na Akoya. A especialista em investimentos imobiliários, contudo, “não se encontra em posição de comentar quaisquer factos sob investigação em Portugal. Não está envolvida em quaisquer atividades ilegais e não gostaria de ver o seu nome associado a este caso”, esclareceu à VISÃO Laurent Marie, advogado de Monika. Na administração do fundo mantém-se Ana Bruno.
Ricardo Castro, também ele arguido no âmbito do caso Monte Branco, só no dia 28 de agosto foi substituído na administração da Arcofinance, outra das sociedades sob investigação do MP, que atuaria com métodos idênticos à Akoya, de Canals. Ricardo foi detido a 23 de maio e saiu com uma caução de 300 mil euros.
5 – INVESTIDOR ‘POTENTE’ IMPÔS ANA BRUNO
Ertan Isen, gerente do grupo imobiliário Acron, na sucursal de Dusseldorf, foi, como ele próprio assume, o cérebro que concebeu o fundo de investimento que vai gerir o hotel do novo aeroporto internacional Berlim-Brandenburgo, cuja inauguração está prevista para o próximo ano, depois de sucessivos adiamentos. Para o conselho de administração do fundo foram escolhidos Ana Bruno e Michel Canals, tendo este sido afastado recentemente por causa das investigações em curso. Ana Bruno “foi imposta como administradora do fundo por um investidor potente”, confirmou Ertan Isen à VISÃO, escusando-se, porém, a revelar a sua identidade. “Esse dado não é público, uma vez que não se trata de um fundo comercializável na bolsa de Berna nem em qualquer outra parte”, esclareceu aquele responsável.
O Ministério Público estará nteressado em descobrir as ligações ao referido fundo e a circulação do dinheiro. Mas, adverte fonte do MP, “é cedo para tirar conclusões, a dimensão das investigações é imensa”.
Este é, aliás, um dos casos de especial complexidade que poderá atrasar eventuais diligências, apesar dos pedidos de colaboração às autoridades suíças e alemãs. De qualquer forma, sabe a VISÃO, suspeita-se que terá sido a Akoya, de Michel Canals, a intermediar o investimento no hotel do novo aeroporto. Na sombra do mesmo estará um investidor angolano com ligações à banca, em Luanda, e a uma sociedade com sede nas Ilhas Virgens britânicas. “A natureza da minha relação com os investidores ligados ao aeroporto Berlim-Brandenburgo, a existir, é profissional e, como tal, não pode ser comentada”, referiu Ana Bruno à VISÃO, acrescentando: “Uma das funções mais comuns aos advogados reputados em matéria de negócios é a da representação de clientes em órgãos sociais de empresas.
Isto acontece em todo o mundo e Portugal não é exceção. A carteira de clientes do escritório em que exerço advocacia não tem clientes de apenas uma nacionalidade”, assinala.
A construção do novo aeroporto Berlim-Brandenburgo está envolta em polémica, configurando, segundo a revista Der Spiegel, “uma receita para o desastre”. A inauguração foi adiada pela terceira vez em dois anos, com evidentes prejuízos para investidores, operadores aéreos e, possivelmente, para o erário público alemão.
Além de diversas batalhas legais que incluem queixas do operador do aeroporto à empresa de arquitetura começa a falar-se de uma megalomania de reduzida funcionalidade, onde até os testes aos sistemas de videovigilância e prevenção de incêndios falharam. O atraso na inauguração abriu um buraco orçamental e isso implica necessidades de novos financiamentos públicos que o Governo alemão poderá recusar. O Financial Times referiu-se a uma situação de “calamidade” e a um autêntico “pesadelo” para os políticos diretamente envolvidos na supervisão do projeto.
Os investidores do fundo a que está ligada Ana Bruno e a sócia da Akoya, Monika Reist, estão, porém, descansados, uma vez que os contratos preveem indemnizações, caso os planos para o aeroporto não se concretizem como previsto.
6 – OS SEGREDOS DO ‘PRÉDIO DOS ANGOLANOS’
O Estoril Sol Residence, controverso projeto de luxo da orla marítima de Lisboa, tem andado nas bocas do mundo. No último ano, foi noticiado a abertura de um processo de branqueamento de capitais relacionado com a compra de cinco apartamentos naquele empreendimento por parte de Álvaro Sobrinho, presidente do BES-Angola. O visado, porém, já obteve vitórias no Tribunal de Relação, tendo sido ilibado, “por ora”, da acusação de branqueamento de capitais e da suspeita de associação criminosa, e obtido o descongelamento das contas bancárias e a revogação do arresto das casas. “Ganhámos todos os recursos”, sustenta Artur Marques, advogado de Sobrinho.
O Estoril-Sol poderá, contudo, ser uma das peças importantes para descodificar alguns aspetos menos claros do processo Monte Branco. Que complexo residencial é este, afinal? Segundo uma investigação do conhecido jornalista angolano Rafael Marques, os três blocos do polémico edifício constituem o símbolo “do novo-riquismo angolano”. Com preços que oscilam entre um milhão e 5 milhões de euros, alguns dos apartamentos serão propriedade de várias figuras das elites de Luanda ou seus familiares.
Na lista de compradores divulgada por Rafael Marques no site Maka Angola aparecem, entre outros, o ministro Costa Neto e a filha, o general Hélder Dias Vieira “Kopelipa “, o ex-ministro das Finanças José Pedro de Morais e o banqueiro Álvaro Sobrinho, além dos seus irmãos Sílvio e Emanuel Madaleno. Este último substituiu recentemente Ana Bruno na administração da Newshold, dona do semanário Sol. A sociedade da advogada foi alvo de buscas e apreensões, no âmbito das investigações dos casos Estoril-Sol e Monte Branco.
7 – ANGOLANOS JÁ PAGARAM A ESCOM?
A ESCOM, antiga empresa da área não financeira do Grupo Espírito Santo, foi vendida, no final de 2010, a um grupo de investidores angolanos. O negócio englobou a alienação da participação do GES na construtora Opway Angola. Oficialmente, o GES não confirma que a compra tenha sido efetuada pela petrolífera estatal Sonangol, como é público, e escuda-se na confidencialidade das condições contratuais para recusar comentar a operação.
Ora, esta é precisamente uma das dúvidas que o MP está a tentar esclarecer, uma vez que, segundo as informações da VISÃO, os angolanos só terão pago cerca de 10% do valor acordado no negócio, que terá sido ligeiramente inferior a 500 milhões de euros. O GES garante, porém, que a ESCOM-entretanto visada, também, no caso dos submarinos -já não pertence ao grupo, remetendo eventuais explicações quanto aos objetivos da mesma para os seus novos órgãos sociais. Presidida por Hélder Bataglia, antigo sócio do GES na empresa e atual administrador do BES-Angola, a ESCOM terá estado associada à fundação da Akoya, de Canals. O GES desmente. Bataglia garantiu, em maio, à VISÃO, através do seu advogado Cunha Vaz, que canalizou aplicações financeiras através de Canals e da Akoya, mas apenas a título particular.
8 – RERT III, SEGREDOS DE UM PERDÃO
Taxar, lavar e voltar a dar: foi este o resultado do terceiro Regime Excecional de Regularização Tributária (RERT), a forma que permitiu ao Estado recuperar cerca de 259 milhões de euros em contas escondidas fora do País. O susto provocado pelo Monte Branco fez com que fortunas depositadas no estrangeiro fizessem escala em Portugal para serem taxadas a 7,5 por cento e voltassem a sair, “lavadinhas” e tudo.
“O perdão fiscal do RERT III foi das coisas mais inauditas a que assisti”, resume Carlos Pimenta, do Observatório de Economia e Gestão de Fraude da Faculdade de Economia do Porto. “É verdade que esses capitais foram taxados, mas que medidas foram tomadas para impedir que saíssem novamente, pela via legal e ilegal? No fundo, taxaram-se e lavaram-se fortunas que continuarão no exterior. Caso sejam detetadas, pagam menos do que o cidadão comum paga no IRS”, explica Carlos Pimenta.
Trata-se, pois, “de uma verdadeira despenalização criminal. Quem coloca a fortuna lá fora continuará a fazê-lo porque compensa mesmo sendo apanhado.
É uma espécie de risco do negócio”. Os custos, esses, são elevados do ponto de vista económico e criminal, mas “é sabido que, para os juristas, estas fraudes são sempre resolúveis”, ironiza o catedrático de Economia.