Óbidos, junho de 1378
Leonor sentou‐se na cama, as pernas longas e nuas cruzadas como uma moura, debruçando‐se sobre o rosto pálido de Fernando, beijando‐lhe a boca. Mas o rei não reagiu, imóvel.
Leonor provocou‐o:
– Não acredito. Hoje não tenho direito a ver‐te exercitar os braços e as pernas, esfregar as palmas das mãos, espirrar três vezes e passar um pente de marfim pelo que te resta do cabelo?
Desde que o rei encontrara o pergaminho de como preservar a saúde, da autoria do papa João XXI, o único papa português e o único médico, seguia religiosamente os seus conselhos, logo a começar pelos exercícios recomendados para o momento do despertar.
Mas, quando Fernando gemeu um protesto, Leonor sentiu um arrepio de aflição e, ajoelhando‐se, agilmente colocou a mão na testa do marido, procurando ver se estava quente. Não estava.
– Sentes‐te bem? – perguntou.
– Achas que gemia se sentisse? – respondeu o rei, com um esgar.
– O que é que te dói? No mesmo sítio que das outras vezes? – quis saber, aflita. Desde janeiro, em Tentúgal, que o rei se sentia doente, delegando nela grande parte do trabalho. Fernando inspirou fundo, a mão correndo‐lhe para o peito, de onde o coração parecia querer saltar:
– Pior, sinto‐me pior, muito pior do que das outras vezes. Sinto‐ ‐me sem forças. Mas prometi receber Lourenço Anes Fogaça, quero enviá‐lo a Londres o mais depressa possível – disse, procurando levantar‐se, mas deixando‐se cair na almofada, pálido.
Leonor saltou da cama e, abrindo a porta da câmara do rei, ordenou ao camareiro‐mor do rei que mandasse chamar urgentemente o físico. Discretamente, em segredo, não poderia constar que o rei estava de novo doente. Havia demasiada gente que ficaria satisfeita com a notícia.
Acorreram o físico e o astrólogo, o boticário e o sangrador, e Fernando, agora com melhores cores, recebeu‐os sentado contra as almofadas e, dirigindo‐se à rainha, troçou:
– Tanta gente que ficava sem emprego se o rei nunca estivesse doente.
Leonor, rápida, reagiu:
– Se fosse eu, despedia‐os de cada vez que adoecesse. Devem é prevenir os males, porque depois só resta remediá‐los…
O mestre Gomes concordou, enquanto tomava o pulso do monarca. Também ele dispensaria estes semi-bruxos que se mantinham na esfera real. Estudara na Universidade de Montpellier, era um homem arrogante e seguro de si, mas consciente de que a sua posição dependia do encanto pessoal e da lisonja.
Subitamente, Fernando pareceu desfalecer, reagindo a uma tontura, seguida de um acesso de vómitos, a que um servo acorreu com uma bacia de prata e uma toalha.
O boticário, curioso, observou o produto amarelado do estômago do rei, mostrando‐o ao mestre Gomes.
– Vossa Majestade sofre de novo de uma crise de fígado, vou receitar‐lhe uma dieta rigorosa e um xarope para ativar os humores. O rei deixava‐se deslizar para debaixo dos cobertores, tremendo de frio, a pele húmida com suores frios, e uma dificuldade crescente em respirar.
– Majestade, era recomendável afastar a rainha – disse o boticário.
Fernando fez um gesto a Leonor, para que saísse, e os seus olhos diziam o que a rainha sabia, que era perigoso para a criatura que, se a Virgem o permitisse, desta vez cresceria dentro de si. Tinham‐se amado dia após dia, precedendo cada ato sexual com orações, de joelhos frente ao relicário, e seguramente a nova poção de ervas ajudaria ao milagre.
A rainha afastou o físico e o boticário, o astrólogo e o sangrador, beijando o rei na testa, mas Fernando não pareceu reconhecê‐la, e depois fechou atrás de si a cortina, dando um salto, assustada, quando deu de caras com David Negro, o tesoureiro do rei, oficiais e escrivães, cavaleiros e escudeiros. Enfureceu‐se, abrindo caminho por entre eles:
– Parasitas – murmurou entredentes, fulminando com os olhos o camareiro do rei, que abriu as mãos num sinal de impotência.
– Obedeci a Vossa Majestade – garantiu.
Leonor virou‐lhe as costas, impaciente. Era impossível guardar um segredo nesta corte. O conde velho seguiu‐a, visivelmente preocupado:
– Leonor, o que disse o físico? – perguntou baixinho.
– Que comeu demasiada carne e ovos – respondeu a rainha, esforçando‐se por manter a voz serena, não fosse alguém ouvi‐la. Sim, aqui também as paredes tinham ouvidos.
– De novo?
– De novo! Mas com uma gravidade maior. Pelo menos é o que dizem os insignes físicos e que tais de Sua Majestade.
– E tu que pensas?
– Penso que o Natal já foi há muito tempo – respondeu, irónica. Mas ainda não chegara à sua câmara quando lhe vieram pedir que voltasse aos aposentos do rei. Sua Majestade piorara subitamente, não dava acordo de si.
– Chama Aisha, Iria Gonçalves e Mia. Que venham ter comigo à antecâmara do rei. À secreta. Elas sabem, não te preocupes, diz‐lhes só isto.
E, lutando contra a angústia que a tomava, beliscou‐se enquanto acelerava o passo. O que sucederia se Fernando morresse? Como viveria sem o seu amor? Como viveria sem o poder que a deixava partilhar? Beatriz tinha apenas cinco anos – em menos de dois tempos, os fidalgos, o povo, o povo de Lisboa, escolheriam o “infante” João de Castro. Que tinha agora um filho varão, o filho de Maria Teles.
Inspirou fundo, procurando não correr, engolindo em seco numa tentativa de desacelerar a respiração, quem se cruzasse com ela não podia perceber a aflição que a consumia.
Antes de entrar na antecâmara do rei, antes de atravessar de novo aquela pequena multidão de oportunistas, benzeu‐se. E jurou a si mesma: não deixaria Fernando morrer.