“A Visão foi um projeto fora do baralho, na época, e ainda hoje o seria.” Quem o diz é Marcos Farrajota, ilustrador e fundador da Associação Chili com Carne, que assumiu a utopia de editar este Revisão, 184 páginas escavadas na história (quase) desconhecida da banda desenhada portuguesa dos anos 70 (tiragem de 700 exemplares, a €20). “Já havia revistas para leitores, para crianças, mas fazia-se bd convencional e moralista. E, de repente, há esta interrupção de formas visuais e temas.” Ler estas bandas desenhadas curtas, publicadas sobretudo nos anos quentes de 1975/76, é perceber que os autores sacudiam o pó das pranchas: a cores ou a preto e branco, o humor era um exercício ácido-erótico-satírico e até naive, o niilismo rondava, a ficção científica e o onirismo campeavam, a sátira não poupava medos e bandeiras do tempo – dos pozinhos psicadélicos aos clichés comunistas, da libertação sexual às teorias da conspiração e à guerra colonial. Aqui, Portugal libertava-se das grades para se ver aos quadradinhos.
“De alguma forma, a Visão é quase o ano zero para a bd”, atira Farrajota. Revista mensal (com um ou outro soluço), publicou doze números: os primeiros seis, dirigidos por Vítor Mesquita que foi “expulso por uma junta revolucionária”, aproximavam-se da estética das bd cubanas; os últimos seis “abriram os temas” pela mão de Eduardo Nobre. Publicava um grupo heterogéneo de artistas. “Pessoas ligadas à publicidade, à ilustração, ao desenho. Uma classe social com algum poder económico, com acesso clandestino a produções lá de fora no tempo do marcelismo. Eles já conheciam a Echo des Savannes e a Metal Hurlant [revistas de bd, fundadas em 1972 e 1975]. A exceção será, talvez, o Carlos Zíngaro, que teve outro contacto com a bd”, diz Marcos. “Ele foi levado para a bd norte-americana, para os comics underground dos anos 1960/70, enquanto os outros criadores tinham ligações com a onda francesa.E, história engraçada, Zíngaro foi parar á biblioteca da embaixada dos EUA, onde encomendavam comics para o seu acervo, para ele as ler.”
Graças a Revisão, Carlos ‘Zíngaro’ Alves, 68 anos, músico reconhecido, foi já convidado pela Art Review para aí publicar uma bd no final de 2016. E é ele que comenta o fôlego revolucionário “talvez inconsciente” da Visão: “Queríamos criar coisas do género que se viam em outros países. Mas esta era também uma época complicada: ou se era revolucionário ou devidamente enquadrado partidariamente, ou fazedor de coisas derivativas e alienantes. Ao branco e negro, faltava frequentemente alguma cor.” Não é o caso de Revisão.
Retrato de grupo
Carlos Zíngaro descreve a Visão como “um grupo de amigos que gostavam de bd, de contar histórias e desenhar”: “Não tivemos muitas reuniões, mas as que existiram eram divertidas, críticas e diferentes.” Revisão mostra um lote de artistas com registos diferentes: além das pranchas críticas de Zíngaro, há Mário-Henrique Leiria (o autor de Contos do Gin Tónico) em parceria com Isabel Lobinho; o mordaz Zepe; Carlos Barradas com uma ópera espacial; Zé Paulo, que fez a capa do número dez da revista. E bd de António Pilar, António Pinho, Bruno Scoriels, Carlos Soares, Fernando Relvas, Gracinda, J.L. Duarte, João Manuel Barroso, Nuno Amorim, Paralta com Zé Baganha, Pedro Poitier e Pedro Massano – este último, não se escusando a abordar um tema sensível em Angola 1971. Algumas bd estão datadas? “Há trabalhos que ultrapassam essa ideia, outros foram escolhidos por isso mesmo”, defende Marcos Farrajota. E até onde é que poderiam ter chegado alguns destes artistas? “É impossível fazer uma história alternativa”, afirma o editor. Haja consolo com Revisão.