Há meia dúzia de anos eram uma promessa, hoje já são uma certeza. Dantes eram cinema emergente agora já têm presença consolidada em festivais de todo o mundo e chegam às salas comerciais. Histórias da Idade de Ouro vem com a assinatura de Cristian Mungiu (ganhou a Palma de Ouro em Cannes, em 1997, com 4 meses, 3 semanas e 2 dias), mas ainda não é o grande filme sequencial daquele que virou todas as atenções mundiais para o novo cinema romeno E o 4,3,2 é de facto, um filme extraordinário, com um apuradíssimo entrelaçamento formal e narrativo..
Mas não restam dúvida de que é novo este cinema, uma lufada de ar fresco no panorama europeu, a provar que os milagres existem, e que um cinema em estado comatoso, pode a qualquer momento despertar, vivo e a dar pontapés. Os realizadores nasceram na década de 60 e 70, e auto-intitulam-se a “geração dos filhos do decreto”, porque foram fruto de um baby boom provocado por um decreto em que Ceausescu proibia abortos e não facilitava a contracepção.
No seguimento de Califórnia Dreamin’, de Cristian Nemescu (prémio Un Certain Regard, em Cannes), ou de A Morte do Sr Lazarescu, de Cristi Puiu ou de 12:08 a Este de Bucareste, de Corneliu Porumboiu, chega-nos agora estas Histórias da Idade de Ouro (ante-estreou no Indie), seis curtas-metragens todas elas escritas e produzidas por Mungiu, uma filmada por ele, as restantes por novos autores (das suas respectivas filmografias só constam duas ou três curtas).
E só o título vem carregado de ironia. Os últimos 15 anos de Ceausescu foram considerados dos piores na história da Roménia, no entanto a máquina propaganda chamava-lhes “os anos de ouro”. Nestas seis curtas, em que se retratam alguns mitos urbanos (histórias que se contavam como verdadeiras, e se non è vero, è ben trovato), os romenos voltam a mostrar que é possível rir-se de si próprios, mesmo quando viviam debaixo de um demencial totalitarismo à asiática.
É um humor de guerrilha, que ataca quando menos se espera, e investe nos locais mais improváveis. Ao revisitar um regime ainda tão quente na memória colectiva ( a revolução romena aconteceu em Dezembro de 89), os realizadores podiam mostrar a desgraça, a decadência, a demência – e fazem-no, só que não através do registo trágico (como Mungiu optara no seu 4, 3, 2) mas através da sátira, do riso, do escánio… E isto pode ser muito mais demolidar, e ter do mesmo modo um efeito denúncia.
No retrato do país daquele tempo em que “a comida era mais importante que o dinheiro, a liberdade mais importante que o amor e a sobrevivência mais importante que os princípios” – na história de um fotógrafo que tem de fazer os famosos photoshop, noutras duas que envolvem tráfico de garrafas de ovos, na do polícia ganancioso que leva para o seu exíguo apartamento um porco vivo, noutra de um diligente militante em campanha de alfabetização na Roménia, e no extraordinário caso de uma aldeia que se engalana para receber uma comitiva oficial – não é só o regime que sai caricaturado, mas os próprios romenos, vítimas sim, mas dotados de um chico-espertismo que parece não ser só propriedade nossa.
Quando os portugueses falam do regime de Salazar, não ousariam fazer comédias (ou talvez Fantasia Lusitana, de João Canijo tenha ido mais por esse lado, mostrando no seu documentário a tragicomédia de um país), pelo contrário salientam o sofrimento, a opressão, o penar dos perseguidos, a pobreza, a miséria… Os romenos também o fazem, mas com a enorme superioridade moral de saber gozar consigo próprios… Aliás, eles têm uma palavra para isto: “Râsu-plânsu”. Em português seria qualquer coisa como “chorir” – se alguma vez nós nos tivéssemos lembrado de inventar uma palavra para “rir e chorar ao mesmo tempo”, ou para “gozar com a própria desgraça”. E para usar quando as coisas já estão tão mal, que já só vale a pena rir. E este enorme talento de rir de si próprios é ao mesmo tempo regenerador e catártico. Desassombradamente, sem a miopia da distância, nem o astigmatismo da proximidade.