Está tudo doido, avisamos já. No palco do Teatro da Trindade, em Lisboa, há músicos em cadeiras de rodas com um órgão Roland no colo, bailarinos-actores de vestes brancas, com muletas e andarilhos, e dois cantores vestidos de preto, empoleirados no cimo de um enorme cubo metálico. A mais recente criação do Teatro O Bando, Quixote, estreia-se esta quinta-feira, 15, e parte da ópera bufa de António José da Silva, o Judeu, Vida do Grande D. Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança, escrita em 1733. O desafio foi lançado pela directora do Trindade, Cucha Carvalheiro, apostada em recuperar a tradição musical do teatro e em levar à cena autores portugueses. E se o Judeu parodiou a obra de Cervantes, João Brites, o sempiterno encenador d’O Bando, resolveu fazer o mesmo à ópera do Judeu e construir uma ópera mais buffa ainda…
Em Quixote, não vemos um alucinado cavaleiro partir com o seu inseparável criado – vemos, antes, as suas mulheres, Dulcineia e Teresa Pança. Uma inversão de géneros que João Brites garante ter sido opção mais pela paródia do que por uma qualquer afirmação do sexo feminino. “Quisemos ver como soava este texto na boca de uma mulher”, diz. Nesta peça, é Dulcineia quem vai pelo mundo fora, provar que ainda existem “mulheres de armas”, e é Teresa Pança quem a segue, na esperança de vir a ser governadora de uma ilha e assim poder encher a barriga. A elas juntam-se outras personagens criadas por António José da Silva, mas sempre com o sexo trocado (o barbeiro passa a cabeleireira, a moça passa moço). Figuras que O Bando transformou em seres da imaginação de um grupo de velhos fechados num lar. Afinal, enquanto se consegue imaginar, está-se vivo. E estes velhos têm uma imaginação bem solta. “Lembrei-me do meu avô que desaparecia de casa e de como, depois, andávamos todos à procura dele”, conta Brites.
Quem lhes dá corpo são sete bailarinos-actores (Susana Blaser, Sandra Rosado, Joana Manaças, Joana Bergano, Catarina Felix, Pedro Ramos e Felix Lozano), mas as vozes que ouvimos são as de dois cantores-actores, Sara Belo e Bruno Huca, que interpretam todos os personagens, como se se tratasse de um playback. A ideia veio da experiência de Brites em Bruxelas, durante o seu exílio antes do 25 de Abril, no Teatro Toone (cada marioneta era manipulada por um marionetista, mas uma única pessoa fazia todas as vozes). “Aqui não há fios, mas é como se as vozes dos cantores dessem vida àqueles personagens imaginados pelos velhos e os fizessem entrar na loucura do imaginário”, explica o encenador.
A canção da Romana
Está tudo doido, já dissemos. E Manuela Mena, responsável pelo acolhimento na Quinta de Vale de Barris, em Palmela, deu logo por isso, quando três dos actores lhe entraram pela cozinha, para ali ensaiarem uma das cenas de Quixote. À volta da mesa, onde o pão e os pastéis de bacalhau esperam pela hora de almoço, Joana Manaças, Pedro Ramos e Catarina Felix põem-se a dançar, com gestos tontos. Abrem e fecham a boca, ao ritmo das palavras ditas na música que sai do gravador, instalado em frente ao microondas. “Isto parece quase a canção da Romana!”, exclama Manuela Mena enquanto põe o chouriço no arroz de pato, que já está a tostar no forno. “O Jorge [Salgueiro] pirou, não?!”, pergunta, a rir.
Daí a pouco, havemos de perceber que Jorge Salgueiro, o director musical e compositor desta ópera e de muitas das bandas sonoras das peças d’O Bando, “pirou” mesmo. Em Quixote, a música é uma rapsódia de estilos, de erudita a electrónica, de fado a pimba, da música popular às musiquinhas de telemóvel. Tudo tocado em órgão e cantado com diferentes tons e sotaques, da operática Dulcineia à popularucha Teresa Pança. “Perdi completamente a vergonha e deixei de me levar a sério. Fiz 40 anos, já posso fazer isso…”, brinca Jorge Salgueiro.
“Nunca ninguém fez nada de novo na história da música e da arte. Os artistas roubam sempre e foi isso que fiz: roubei, digo que roubei e desafio ‘vejam lá se descobrem onde roubei'”, acrescenta. João Brites falará de uma banda sonora como a que nos ocupa o quotidiano, invadida por sons que não escolhemos nem controlamos. “Cada vez tenho menos a certeza do que é erudito e do que é popular, acho que tudo é relativo e isso acaba por perder o sentido”, afirma Jorge Salgueiro.
Rocinantes cavalarias
Num dos barracões da Quinta de Vale de Barris têm decorrido os ensaios de Quixote, aquecidos por uma salamandra. Sentado atrás de uma mesa, João Brites fala com os bailarinos-actores, espalhados pelo chão do palco, canetas na mão e blocos de apontamentos no colo. “Têm de conseguir fingir que não sabem nada do que vem a seguir. Temos de mostrar fragilidade e não domínio. A relação do tempo real com o espectador é uma batalha”, explica-lhes João Brites. Trabalham o texto, as indicações cénicas, os sentidos, as técnicas, os movimentos e as motivações dos personagens. Tudo isso induz a leitura do que está a acontecer em palco, sublinha Brites. Mais tarde, há-de dizer-nos também: “Todas as histórias se revelam pela maneira que temos de as contar. O texto é tridimensional e procuro um olhar especial sobre o que está ali, para falar sobre nós hoje.”
Joana Manaças elogia o director d’O Bando: “A figura do mestre em teatro desapareceu, mas ele ainda é das poucas pessoas que têm esse papel”, diz, numa das pausas do ensaio. “O João é de uma riqueza enorme. Às vezes, gostava de ver as coisas como ele vê, mas nem sempre consigo”, descreve Sandra Rosado. “Tem uma imaginação de criança. Está sempre a ter ideias e nunca desiste de as pôr em prática”, acrescenta, ainda, Joana.
Talvez por isso, também não tem limites a imaginação dos velhos desta história. Entram em palco com gestos lentos, encarquilhados, mas soltam os movimentos quando lhes cantam as aventuras. Susana Blaser, a Dulcineia, avança com uma muleta que termina num desentupidor – há-de ser a sua espada, num combate contra um temível leão africano e contra todos os gigantes que a atormentam. Numa cadeira de rodas, parte, sem hesitar, em “rocinantes cavalarias”.
Durante a peça, os próprios actores reflectem como será quando, também eles, ficarem velhos. “É uma paródia aparentemente ligeira e fútil, mas densa e profunda, que nos leva a reflectir. Em Quixote, procuramos o desconcerto, há um engano constante. Mas é uma ópera positiva, luminosa. Mesmo nos espectáculos mais pesados, há sempre uma réstia de luz. Pode ser um hino à vida, uma forma de arregaçarmos as mangas”, afirma João Brites.
Vida no campo
Lá fora já não chove, mas ainda restam algumas gotas de água, espalhadas pelas folhas muito verdes das árvores e das plantas que sobem a encosta da Quinta. Do barracão ao lado, vem outra música, do ensaio da peça que O Bando vai estrear a 20 de Maio, em Palmela, Nós Matámos o Cão Tinhoso, do moçambicano Luís Bernardo Honwana, encenada por Nuno Pino Custódio. É ao almoço que todos se encontram, à volta do arroz de pato de Manuela Mena. “Aqui, sinto-me retirado, há maior concentração. As viagens para ir e vir de Lisboa são compridas, por isso, temos tempo para ligar e desligar”, nota o bailarino Felix Lozano. “Trabalhar no campo é agradável, mas o que conta é, sobretudo, a forma como O Bando funciona: um trabalho de equipa, em que todos podem dar a sua contribuição para os espectáculos, desde o encenador e o intérprete à pessoa que está na cozinha”, observa Joana Manaças.
Uma semana depois, já o ambiente será diferente. Ao palco do Teatro da Trindade, em pleno Chiado lisboeta, não chegam os sons dos pássaros que costumam sobrevoar o céu de Palmela, nem o cheiro da madeira a queimar na salamandra. A luz do dia entra apenas pelas estreitas frinchas das grandes portadas do teatro, mas nesta sala esplendorosamente dourada a concentração atinge o auge, a antecipar a estreia que não tarda. Dulcineia, também ela, está pronta para a batalha: “Ainda não creio que me vejo montada no meu rocinante para prosseguir-ir-ir as minhas aventuras-duras. Quero que vás ao castelo onde vive D. Quixote e lhe digas da minha part’que já me acho em campo raso p’ra batalhar com quantos gigantes tem o Mundo”, canta Sara Belo, dando vida ao corpo de Susana Blaser.
Está tudo louco? Talvez não. Como se diz na apresentação deste Quixote, “Loucura seria adormecer.”