Não se sabe nada da forma como o Eric Rohmer, recentemente falecido com perto de 90 anos, arrumava as gravatas no seu armário. Se por cores, se por formatos, se por ordem da qualidade do tecido… Ou se, pelo contrário, as deixava desordenadas a um canto. E não se sabe nada sobre isto, não só porque esta informação não tem qualquer interesse, como porque o mais provável é que Rohmer nem fosse um adepto desse atavio masculino, que o tempo há-de tornar-se tão ridículo quanto as golas buriladas do século XVIII. Mas sabe-se que Rohmer gostava de ordem, que o seu devir criativo lhe acontecia por ciclos, que as suas obsessões se repartiam por fases, que era bastante “serialista” na forma como organizava a sua vasta filmografia ( mais de 25 filmes longas e umas tantas curtas em 57 anos de carreira). Por isso faz todo o sentido que a reedição da sua obra em DVD se faça em caixas, como os famosos Contos das Quatro Estações, já da década de 90(que reúnem O Conto de Primavera, O Conto de Primavera, O Conto de Outono e o Conto de Inverno). O sextexto de filmes, porventura mais populares da sua carreira trouxe-lhe a fama (Os Contos Morais, na década de 60 e 70, nos quais se incluía A Minha Noite em Casa de Maud ou O Joelho de Claire). Trouxeram-lhe a fama, a idolatração de alguma público, a estranheza de outra, mas quase sempre a revalidação da crítica. Era um realizador metódico, cujos agrupamentos de filmes ganhavam mais uma lógica de rima intelectual ou de geometria moral. Não eram sequenciais, nem sequelas nem prequelas uns dos outros, mas possuíam uma cosmogonia interior, talvez nem sempre muito perceptível.
Assistir hoje, por exemplo ao seu primeiro grande sucesso (A Minha Noite em Casa de Maud) é mais do que ver um filme, é uma experiência bizarra. Mas foi ao seu tempo algo completamente invovador. Repare-se no trailer acima nesta incrível cena de jantar a três em que se discute Pascal e Cristianismo. E conversa-se, conversa-se, conversa-se…
E apesar da linha de séries, Rohmer era um desalinhado. Quer dizer, alinhava, claro, pela nouvelle vague, mas era de uma geração acima dos nomes que mitificaram o movimento, como François Truffaut, Jean-Luc Godard, Jacques Rivette ou Claude Chabrol. Ajudou a romper os padrões narrativos, mas foi mais zeloso ainda na ruptura. Não prestava contas à verosimilhança, tinha horror à ligeireza, derramava o seu moralismo à vontade, não se escusava de exibir o pretensiosismo filosófico nuns filmes, e de descair para as banalidades mais miudinhas do quotidiano noutros. Não tinha compromissos, em suma. Que é como quem diz, não usava gravatas.
Eric Rohmer, O moderno ( Aventuras de Reinette e Mirabelle; A árvore, o presidente e a mediateca, Os encontros de Paris)- Clap Filmes
Eric Rohmer Contos das 4 Estações (Conto de Primavera, Conto de Verão, Conto de Outono, Conto de Inverno) – Midas
OUTROS DVDs PARA VER NA PÁSCOA, embora não tenham, graças a Deus nada a ver com a quadra:
-As Praias de Agnès, de Agnès Varda (Midas)
A realizadora francesa, a quem já chamara a avó da Nouvelle Vague, diz no próprio documentário que se abrissem, e lhe fizessem uma espécie de autópsia biográfica onde noutro se encontrariam paisagens e cidades, nela, estes médicos legistas da memória, encontrariam praias. E é com base neste pressuposto de que na sua vida, nos momentos cruciais, mais pessoais ou profissionais, havia sempre um areal com mar ao fundo (ainda que debaixo da calçada) que Agnès Varda elabora um inesquecível auto-retrato, por vezes narcísico, mas cheio de cinema lá dentro e sobretudo de marcas de um geração que soube mudar o mundo e proibir muitas proibições.
-Tetro, de Francis Ford Coppola (Clap Filmes)
Tem algo de decepcionante e de excessivamente transbordante, mas não deixa de ser um filme extraordinário. Porque tem um realizador extraordinário, que agora já faz o que quer e como quer, corre os riscos que lhe apetece (como fazer um filme a preto e branco parcialmente falado em castelhano da argentina), sem se deixar “marionetar” pelos grandes produtores de Hollywood. Nesta tragédia familiar com uma poderosíssima fotografia a preto e branco já pouco resta do outro Coppola, o de Apocalipse Now ou de a saga O Padrinho, ele nem gosta mais de filmes de guerra nem de gangsters. Nos extras, o imenso privilégio de ouvir Coppola e o jovem romeno Mihai Mihai Malaimare, director de fotografia, com quem Coppola já trabalhara em Juventude sem Juventude, durante o Estoril Film Festival.
-Em Estado de Guerra, de Kathryn Bigelow (Lusomundo Zon)
O estado de privação a que os espectadores portugueses estiveram sujeitos dada a curta e muitíssimo discreta passagem pela salas deste filme, compensou-se no imenso privilégio de ter o DVD disponível tão em cima do fenómeno que marcou a última edição dos Óscares. O filme de Bigelow que conquistou, entre outras, a estatueta de melhor filme e realização, e roubou a noite ao colosso tecnológico Avatar. E nada como ter o filme bem à mão para poder ver e rever, repetir cenas e voltar atrás, e compreender como um filme de baixo orçamento, passado na guerra do Iraque, entre uma companhia de desmantelamento de minas, filmado num estilo trepidante e delongado, ao mesmo tempo, conseguiu um efeito explosivo.