Corria o verão de 1978 quando coloquei, pela primeira vez, uma máscara de mergulho na cara! Entrei dentro de água na Praia do Ouro em Sesimbra, em frente ao destroço do histórico navio couraçado Numancia, e o que vi através daquela janela foi inesquecível! Na água cristalina e calma, as rochas sobre o fundo de areia estavam cobertas de algas e com vastos cardumes de pequenos peixes. Fiquei cativo do mundo submerso para sempre.
Nas férias de verão seguintes, voltei a mergulhar nestas águas dezenas de vezes. Fui conhecendo as espécies de peixe, os seus hábitos, os seus segredos e esconderijos. Mais tarde, com fato de mergulho, conheci toda a costa portuguesa de norte a sul. Com o curso de mergulho fui viajando por outros oceanos além-fronteiras. Mas o meu estúdio, onde experimentava novos equipamentos fotográficos, novas técnicas de iluminação e aprendia sobre ecologia, biologia, oceanografia, sempre foram os fundos entre o cabo Espichel e a Arrábida.
Na década de 1990, à hora da novela, vestia o fato de mergulho e com as garrafas às costas entrava na água, nadava uns metros e deixava-me cair para o fundo de areia, na mesma praia do batismo. Com o sol deitado atrás da falésia, assistia à metamorfose nas areias. O turno do dia enterrava-se na areia fina, ou escondia-se num recanto seguro, enquanto o turno da noite despertava como zombies do areal. Milhares de estrelas-do-mar, lulas, potas, camarões, caranguejos, entre muitas outras criaturas, começavam a circular na penumbra da noite. O palco era o mesmo, apenas a luz e os atores mudavam em poucos minutos.
Em 1998, com pompa e circunstância, durante a Exposição Mundial em Lisboa ‒ Expo’98 sobre o tema dos Oceanos, foi anunciada a criação do Parque Marinho Prof. Luiz Saldanha. Uma área protegida que se estende desde a Praia da Foz a norte do cabo Espichel até à Praia da Figueirinha às portas de Setúbal.
Esta área classificada abrange cerca de 53 km2 e assenta numa linha de costa de 38 km, essencialmente de falésias altas e praias de areia.
Após a sua criação, só em 2005 foi detalhado o plano de ordenamento com regras e limitações para todos aqueles que usam este espaço.
O território protegido passou a ter zonamentos e condicionamentos, em função da área em causa: proteção total, proteção parcial, ou proteção complementar.
Com importantes comunidades piscatórias (Sesimbra e Setúbal), turismo intenso oriundo da Grande Lisboa e arredores, bem como muitas atividades lúdicas náuticas, não tem sido fácil gerir uma área protegida com estas características.
Aos poucos, ano após ano, começo a registar muitas espécies, em locais onde nunca as tinha visto. Muitos peixes, que apenas os observava com tamanhos juvenis, começo a vê-los em fase adulta avançada e com bom porte. Robalos, douradas, pargos, entre outros peixes, com valor comercial. Os cardumes de várias espécies começam a ser mais numerosos. Algumas zonas da costa da Arrábida parecem aquários, repletos de vida, desde pequenos invertebrados até grandes vertebrados.
Visitar
Próximo de Lisboa e do estuário do Sado, o Parque Marinho estende-se ao longo de 38 km da costa sul de Setúbal, entre a serra da Arrábida e o cabo Espichel, desde a Praia da Figueirinha à Praia da Foz.
Área: 52 km²
Extensão: 38 km de costa
Profundidade máxima: 100 m
Região: Lisboa e Vale do Tejo
Distrito: Setúbal
Concelhos: Palmela, Sesimbra e Setúbal
Espécies marinhas: > 1 000
Um dos bons exemplos do incremento das dimensões e variedades de peixe é o recife artificial do River Gurara, um navio nigeriano, com 175 metros, que naufragou em fevereiro de 1989 a sul do cabo Espichel. Hoje, um aglomerado de chapas e outras estruturas são um ex-líbris deste parque marinho e um local de peregrinação regular para centenas de mergulhadores.
Todos os anos, revisito locais, converso com os pescadores de inúmeras artes de pesca que trabalham na zona do parque e nos seus arredores. Falo com vários cientistas de várias universidades e instituições que por ali desenvolvem estudos, pesquisas pormenorizadas, que avaliam desde minúsculos animais do plâncton até grandes predadores de topo. As tecnologias sempre a evoluir, a miniaturizarem-se, a possuir mais autonomia de trabalho, mais capacidade de registar dados, vão revelando informações e conhecimentos verdadeiramente notáveis. E mais não se faz, na área da Ciência, nesta zona por não existirem os investimentos necessários para a sua continuidade ou implementação.
O balanço é positivo, mas ainda há muito por fazer na gestão desta área classificada. Muitas vezes, o saber existe, os processos são conhecidos, mas é necessário implementar no terreno as medidas mais eficazes.
É notório que será necessário dar mais atenção às atividades lúdicas, como, por exemplo, o mergulho. Melhorar os acessos às praias e manter os equipamentos. Aumentar a informação sobre esta zona protegida e, claro, não descurar a fiscalização sobre importante património natural.
A comunidade piscatória é igualmente um elemento importante para conhecer a dinâmica deste território. Ninguém passa mais tempo no mar do que os pescadores, o saber adquirido ao longo de décadas, de gerações, é hoje uma importante ferramenta para compreender o presente, ou mesmo o futuro. Já ouvi histórias muito antigas que pensei que fossem fantasia, ou exageros de pescadores e caçadores do passado.
Quando assisto a determinados fenómenos nos últimos anos, que não imaginava alguma vez presenciar nas águas de Sesimbra, vêm-me à memória relatos antigos de marítimos da “Bela Piscosa” ‒ Os Lusíadas ‒ Canto I.
Baleias e golfinhos
Há séculos que estas criaturas nadam por estas águas, mas durante muito tempo foram quase um segredo bem guardado dos pescadores locais. Hoje, existem várias empresas de observação de cetáceos em Sesimbra que realizam viagens diárias para ver de perto estes mamíferos marinhos. Se os golfinhos-comuns e o roazes são as espécies mais frequentes nestas paragens, todos os anos são ainda avistadas baleias-comuns, baleias-anãs, baleias-piloto, orcas e golfinhos-riscados. No cardápio de registos não faltam algumas espécies de tubarões, e outros megapeixes como atuns e espadartes.
Numa viagem ao largo da costa, não só podemos ver estes belos animais marinhos, mas também muitos deles em interação de caça com aves marinhas.
Para quem gosta de observar aves marinhas, o final do verão será a melhor altura do ano para se maravilhar com a diversidade de espécies que ali ocorrem (cerca de uma vintena).
Mega fauna Não é prática comum, mas o mergulho com tubarões-azuis ao largo da costa de Sesimbra-Cabo Espichel pode ganhar maior fôlego. Curiosamente, nesta zona este do Atlântico, a maioria dos tubarões-azuis observados são fêmeas, como este, que veio, curioso, contemplar os mergulhadores
Cinco mergulhos especiais
> Jardim das Gorgónias
Será um dos mergulhos mais famosos de Sesimbra. A poucas milhas do Porto de Abrigo, este cabeço de rocha, a leste da vila piscatória, tem inúmeras gorgónias e uma diversidade de invertebrados notável. Nalgumas zonas da pedra existem “estações de limpeza” onde grandes e pequenos peixes vêm pedir os serviços de desparasitação aos habitantes mais habilitados para esta tarefa, como pequenas sarguetas ou bodiões.
> Pedra do Leão
Esta pedra icónica de Sesimbra tem na sua base uma arcada muito ampla, apreciada por várias espécies de peixes. Não é difícil encontrar cardumes de centenas de indivíduos à sombra desta rocha em dias de grande calmaria. Um deleite visual, para mergulhadores iniciantes e consagrados.
> “River Gurara”
Com o passar dos anos, toda a estrutura do navio vai colapsando. Mas a criação do Parque Marinho Prof. Luiz Saldanha veio permitir que este recife artificial fosse colonizado por uma diversidade de fauna notável. Não sendo permitido pescar na zona, os grandes peixes encontraram ali um refúgio perfeito para viver durante longos períodos. Com boas condições de mar, é uma imersão inesquecível.
> Ponta da Passagem
Perto do cabo Espichel, e numa zona muito hidrodinâmica, há uma ponta rochosa que tem uma arcada submersa de grande dimensão. No verão, esta área costuma ficar coberta de grandes algas laminárias. E onde há uma frondosa floresta de algas castanhas, há muita vida.
> Batelão
Fica ao “virar da esquina”, na base do molhe de Sesimbra. Do lado de fora da infraestrutura-esporão, existe um destroço de um batelão de ferro. Ao contrário do que se poderia imaginar, esta zona é riquíssima em peixe. E quando as águas estão cristalinas e quentes, é impressionante ver os cardumes a circular na zona. Em setembro e outubro é quase certo o encontro com cardumes de milhares de tainhas em cortejos nupciais.
Luís Quinta
Mergulha há mais de 45 anos nas águas do Parque Marinho Prof. Luiz Saldanha – Sesimbra
O multipremiado fotógrafo e realizador de história natural Luís Quinta é colaborador regular da National Geographic Magazine e da revista VISÃO.
Publicou mais de um milhar de artigos e reportagens na imprensa nacional.
Tem diversos artigos e imagens publicadas na imprensa internacional.
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