“A gente tem que sonhar, senão as coisas não acontecem”, disse o arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer. Há pelo menos dez anos que Matosinhos sonhava com a Casa da Arquitetura (CA), a ser inaugurada esta sexta, 17, o primeiro de três dias de festa (ver caixa Fim de semana de festa na página seguinte). Trata-se de um edifício pensado “para que a sociedade possa entender melhor os arquitetos e todo o seu processo criativo”, resume Nuno Sampaio, o diretor executivo da Casa. Posto de lado o projeto inicial, da autoria de Siza Vieira, de um edifício de raiz, a autarquia não deixou esmorecer esse sonho, optando por instalar a CA na agora recuperada Real Vinícola. Após alguns avanços e recuos, eis que abre ao público, não esquecendo, de resto, as memórias daquele que foi o segundo edifício industrial de Matosinhos, ligado que esteve ao comércio de vinho (a construção decorreu entre 1897 e 1901). “Tinha um comboio que ligava estas instalações ao Porto de Leixões, fazia o carregamento das pipas para os barcos e o inverso”, conta Guilherme Machado Vaz, 43 anos, o arquiteto responsável pela recuperação “da forma mais próxima do original”. Desses tempos, resta o painel de azulejos colocado à entrada, junto ao portão. Olhando em frente, ainda no exterior desta Casa em forma de U, conseguimos imaginar o frenesim desses tempos vividos entre o armazenamento do vinho, a construção das pipas na tanoaria e o vaivém dos trabalhadores.
Com dois mil metros quadrados, a CA é a primeira estrutura a abrir no quarteirão onde, nos próximos meses, se esperam inaugurar 14 lojas de design e mobiliário de autor (na ala esquerda), um restaurante (ao centro), uma editora de arquitetura (no antigo depósito de azeite) e o tão aguardado estúdio da Orquestra de Jazz de Matosinhos (OJM), considerado um dos mais bem apetrechados a nível técnico e que funcionará como Centro de Alto Rendimento Artístico. “Voltamos em grande estilo para junto da rua onde nascemos, há 20 anos, no Héritage Café”, congratula-se Pedro Guedes, o diretor artístico da OJM. Em janeiro, espera abrir este estúdio/sala de ensaio “com condições ímpares” e, embora não se trate de uma sala de espetáculos, ali deverá dar alguns concertos. Cá fora, entre o restaurante e um multiusos (para mercados, feiras do livro…), prepara-se o chão que há de receber, em dezembro, as seis esculturas de José Pedro Croft adquiridas pela Câmara Municipal de Matosinhos, depois de terminada a Bienal de Arte de Veneza (encerra a 26 de novembro). A obra Medida Incerta, de Croft, será, diz Nuno Sampaio, “um casamento entre a arquitetura e outras artes”.
Preservar a memória industrial
Guiados por Guilherme Machado Vaz, entremos, pois, na Casa. Este projeto pode ser um “risco para um arquiteto”, admite. “Por um lado, é de uma enorme responsabilidade. Chega a meter medo, porque vamos ser julgados pelos nossos pares. Por outro, é um orgulho enorme fazer a casa da nossa classe. Não sei se algum dia terei a oportunidade de voltar a fazer um edifício assim”, confessa. Na zona outrora administrativa da Real Vinícola nasceu a loja divida em três setores: um dedicado ao mobiliário de autor (abre com peças do Projeto Martins), uma livraria especializada em arquitetura e um outro destinado à venda de objetos de design de autor.
No átrio da entrada, uma parede de vidro separa o público da zona privada do Arquivo, permitindo, contudo, “uma leitura de profundidade do espaço até lá ao fundo”, aponta o arquiteto: desde a zona onde vão guardar-se maquetas finais e de estudo até à área onde estarão arrumados desenhos e pastas de processos em depósito. Subamos ao piso superior rumo à Nave Expositiva: uma grande sala de exposições (800 metros quadrados) no mesmo sítio onde se armazenavam os barris de vinho. No teto, com um pé-direito que pode chegar aos nove metros, foram recuperadas as asnas (traves) de madeira originais – só aqui foi possível fazê-lo, nas restantes zonas a madeira foi roubada durante os anos de abandono da Real Vinícola e, agora, teve que ser substituída. Em todas as áreas, usou-se o pinho e a bétula, com as “caixas” técnicas forradas a metal. Há “caixas com novas funções que fazem lembrar as zonas industriais e vão organizando o espaço”, explica.
No piso superior à Nave, subindo uma escadaria onde foi replicado o antigo corrimão, funcionará a biblioteca. Em baixo, no rés-do-chão, criou-se a Galeria da Casa, uma sala mais pequena (200 metros quadrados) “aberta a pessoas que venham aqui produzir ou ao lançamento de livros”, afirma Nuno Sampaio. Tem a particularidade de possuir um pátio aberto, onde se mantiveram os dois ulmeiros de antigamente. “Preservou-se a identidade e a memória industrial da cidade”, reforça Guilherme Machado Vaz. Os dois únicos elementos em betão do exterior (duas caixas de escadas, tornadas obrigatórias por causa dos regulamentos de segurança) acabam por ser “um elemento quase escultórico, que marca a contemporaneidade da intervenção, mas tenta não interferir com o lado original do edifício”, diz o arquiteto.
Centro de Documentação Siza Vieira
Poder Arquitetura é a exposição que inaugura a Nave Expositiva, que deverá vir a receber três mostras anuais (cada uma com a duração de três/quatro meses). “Pretende questionar a relação da arquitetura com o poder nos dias de hoje”, descreve o arquiteto Jorge Carvalho, um dos comissários, juntamente com Pedro Bandeira e Ricardo Carvalho. Contudo, esta ligação nem sempre é clara. “Temos de procurar uma relação mais indireta e que, muitas vezes, está invisível”, sustenta. Oito poderes (coletivo, regulador, tecnológico, económico, doméstico, cultural, mediático e ritual) constituem a exposição, que apresenta uma “seleção transversal em termos de tendências arquitetónicas”. Envolvidas por uma espécie de rede – como que a simular uma prisão –, estão fotografias de obras, material de trabalho, notícias, maquetas, desenhos de arquitetos de várias gerações de Portugal, África do Sul, EUA, Brasil, China e diversos países da Europa.
A exposição integra projetos de diferentes escalas: Barragem do Tua (Souto de Moura), Terminal de Cruzeiros de Lisboa (Carrilho da Graça), Taipei Performing Arts Center (estúdio OMA, de Rem Koolhaas), ginásio Arena do Morro (da dupla suíça Herzog & de Meuron), igreja paroquial de Saint-Jacques-de-la-Lande, em Rennes, França (Siza Vieira), até à mesquita Baitul Mukarran, em Lisboa (Inês Lobo). À Galeria da Casa, e depois de ter começado em São Paulo, ter passado por Milão e Sevilha, chega a exposição da X BIAU – 10ª Bienal Iberoamericana de Arquitetura e Urbanismo, que, no ano passado, premiou Souto de Moura. A mostra apresenta os 26 projetos premiados, seis livros, duas publicações e uma coleção de vídeos. Para 2018, estão já delineadas outras duas grandes exposições na CA: Os Universalistas – 40 anos de Arquitetura Portuguesa, inaugurada no ano passado em Paris, iniciativa da Cité de l’Architecture et du Patrimoine e da Fundação Gulbenkian (a partir de 6 abril) e Arquitetura Brasileira: Da Modernidade à Contemporaneidade – 90 anos de projetos realizados entre 1927 e 2017, um dos quais deverá ser o cenário feito por Oscar Niemeyer para a peça Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes (a partir de 21 de setembro).
Uma boa parte da Casa será dedicada a guardar e a preservar o acervo de vários arquitetos. À guarda do Arquivo já se encontra o Centro de Documentação Álvaro Siza, pertencente à autarquia de Matosinhos – do qual constam algumas das primeiras obras do Pritzker, como a Casa de Chá da Boa Nova ou a Piscina das Marés –, a Quinta da Conceição (Fernando Távora), a Câmara Municipal e Biblioteca Florbela Espanca (Alcino Soutinho) ou a Coleção 25 anos de Democracia e a Arquitetura Portuguesa 1974-1999. Além de mais de 525 maquetas de Eduardo Souto de Moura (ver caixa Sete Obras de Souto de Moura) – que poderão ser vistas no fim de semana da inauguração, numa oportunidade única de o público visitar o Arquivo – e de projetos do brasileiro Paulo Mendes da Rocha como o do novo Museu dos Coches, em Lisboa. Apostar “nas leituras coletivas e transversais” é, lembra o diretor Nuno Sampaio, um dos objetivos do Arquivo, que ganhou, na semana passada, um conjunto de maquetas, fotografias e desenhos gráficos da construção das 82 estações do Metro do Porto (projetos, entre outros, de Álvaro Siza Vieira, Souto de Moura, Alcino Soutinho e Adalberto Dias). A programação, diz o diretor, passará por mostrar “aquilo que o Arquivo guarda” através de exposições e da plataforma digital que está a ser construída em parceria com a Direção-Geral do Património Cultural.
Embora Nuno Sampaio gostasse, conforme admite, de aqui ter o acervo de Siza Vieira – distribuído pelo Canadian Centre for Architecture, em Montreal, Canadá, pela Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, e pela Fundação de Serralves, no Porto –, lembra que “o arquiteto Siza tomou essa decisão pouco tempo depois de o Governo de então não ter apoiado a construção [do seu projeto] da Casa da Arquitetura”. “Coincidências?”, questiona. Entretanto, e apesar de o projeto do Pritzker para a CA ter ficado “na gaveta”, Sampaio confessa acalentar a “vontade” de Matosinhos “ter um projeto de Siza feito de raiz, num momento sénior, visto que aqui tem o princípio da sua carreira”. Por agora, o importante é garantir a sustentabilidade do novo edifício da CA – associação nascida em 2007 e que funcionou numa moradia da Rua Roberto Ivens (antiga casa de família de Siza) –, obra orçada em dez milhões de euros, financiada pela autarquia. O diretor da CA admite ainda haver “uma natural expectativa de toda a comunidade para que a arquitetura não fique secundarizada relativamente a nenhuma área cultural”. “A arquitetura é para ser vivida por toda a gente”, remata. Ou, dito à maneira de Niemeyer, para ser sonhada.
Parte do espólio do vencedor do prémio Pritzker 2011 ficará depositado na Casa da Arquitetura. Veja aqui sete obras de Souto Moura.
Casa da Arquitetura > Av. Menéres, 456, Matosinhos > ter-sex 10h-18h, sáb-dom 10h-19h > grátis (até 30 dez); €5 (a partir de janeiro 2018)