Todos os primeiros domingos de cada mês, as portas do Palacete de São Bento, em Lisboa, abrir-se-ão para a procissão de devotos do design português que desejem contemplar de perto as mais de oito dezenas de peças que vão coabitar na residência oficial do primeiro-ministro durante o próximo ano e meio. Design em São Bento – Traços da Cultura Portuguesa, uma iniciativa do próprio António Costa com curadoria de Bárbara Coutinho, ambiciona “transformar um lugar de soberania, que nos representa a todos, num epicentro da cultura e do design portugueses”, declara à VISÃO a diretora do MUDE – Museu do Design e da Moda. E, acrescenta, o facto deste espaço “não ser um lugar qualquer permite que o design seja apreendido de outra forma pelos visitantes”.
A exposição tem 85 obras cuidadosamente escolhidas: criações que vão do século XII ao século XXI, assim ampliando os sentidos dados à palavra “design” e colocando sob um mesmo foco de relevância o artesanato popular e a criação contemporânea, a dimensão utilitária e o valor acrescentado do rótulo ‘artístico’. “A importância e o impacto desta exposição mede-se pelo facto de ser uma mostra reveladora da qualidade, capacidade produtiva e criativa de Portugal e não só. Todas as peças foram escolhidas pela sua funcionalidade, e pelo seu valor como símbolo, registo e traço da cultura portuguesa”, enfatiza Bárbara Coutinho.
Design em São Bento – Traços da Cultura Portuguesa é um passeio por obras de 41 designers. Inclui, por exemplo, um prato intervencionado por Vhils para a Bordallo Pinheiro, agora arrumado na parede do átrio da residência oficial de António Costa. Perto, está a secretária de dois pés assinada pelo designer industrial Filipe Alarcão. Na Sala de Espera, também apelidada de Sala dos Embaixadores, em cima do tapete azul-profundo oriundo da Burel Factory, repousam as mesas de madeira Hexa do designer Daniel Vieira, um par de sofás de traço revivalista e pés tubulares da Adico, e a tapeçaria de Daciano da Costa (1930-2005), criada a partir dos estudos de cor feitos em 1971 para o Hotel Penta. Cadeiras há muitas: as desenhadas pela Around The Tree, as Gazela de António Garcia ou ainda a muito fotografada Shell desenhada em 2009 por Marco Sousa Santos.
O candeeiro Boa Nova, concebido em 1991 por Siza Vieira para a casa de chá com o mesmo nome, faz parte da seleção de peças de design patentes. E o consagrado designer Ross Lovegrove nasceu no País de Gales mas criou uma edição limitada de candeeiros para a portuguesíssima Vista Alegre que também marcam aqui presença.
Os visitantes encontrarão na sala de jantar do primeiro-ministro, a exuberante tapeçaria com motivos marinhos de corais criada por Vanessa Barragão, o candeeiro de cortiça que Miguel Arruda desenhou especialmente para o espaço, e ainda o aparador de Filipe Alarcão. Na Sala da Lareira, está exposta a cerâmica Princesa a Cavalo de Rosa Ramalho (1888-1977), decana da olaria tradicional portuguesa. E na sala da receção, o público poderá contemplar um fac-símile do códice Apocalipse de Lorvão, manuscrito iluminado do século XII, um dos primeiros de Portugal (e inscrito no Registo da Memória do Mundo, projeto da Unesco que identifica e preserva documentos de elevado valor histórico e humano).
Encontros, cruzamentos, vizinhanças, diálogos entre peças diferentes, que, sublinha, Bárbara Coutinho, consubstanciam “a marca de Portugal”.
Visitável uma vez por mês, abrigada num espaço a que têm acesso apenas o primeiro-ministro português e os seus convidados, pode sempre perguntar-se se esta iniciativa reforça, de algum modo, o estereótipo de que o design é algo reservado para as elites, os happy few. Bárbara Coutinho não hesita na resposta: “O que me guiou nesta seleção de obras foi exatamente o princípio oposto.” E explica: “Além das peças de mobiliário, luminária, têxteis e objetos decorativos patentes – que têm uma função e que ainda hoje estão em produção, ou seja, estão integradas numa visão corrente do design -, há aqui muitos outros objetos não eruditos. Objetos, como as alfaias agrícolas, ligados à nossa cultura e produtividade, que demonstram como o design é uma capacidade natural do homem de transformar a natureza para melhorar a vida, e como é um fator estratégico, traduzido na internacionalização e na singularidade dos produtos nacionais.”
Os 85 objetos patentes em Design em São Bento – Traços da Cultura Portuguesa dão prova dos materiais que sempre nos habituámos a reconhecer como nossos: burel, cerâmica, cortiça, madeira, mármore. E demonstram a abrangência do design português, espelhado em três exemplos referidos por Bárbara Coutinho à VISÃO: um trilho de estrado, uma tapeçaria de Portalegre, uma cadeira de madeira.
Começando pelo trilho de estrado, esta peça anterior à colonização romana serve para a debulha dos cereais – literalmente, para separar o trigo do joio. Objeto de design ancestral, pertencente ao espólio do Museu de Etnologia e agora colocado na parede da sala de jantar da residência oficial de António Costa, é, sublinha a curadora, “uma peça do povo, que reúne a arte e o engenho”. Arrumada na Sala das Receções, a citada tapeçaria é um estudo de Almada Negreiros (1893-1970) para os painéis da Gare Marítima da Rocha Conde de Óbidos: uma obra em que o modernista trabalhou temas tão pertinentes e atuais como a imigração, a diáspora, “a nação da saída e da saudade”. E Bárbara Coutinho aponta ainda uma cadeira em madeira que reinventa a conhecida cadeira de metal das esplanadas, a “cadeira Gonçalo”: uma peça da marca de mobiliário Around the Tree que tem “reinventado a tradição portuguesa da marcenaria e recuperado técnicas tradicionais procurando dar-lhes outra leitura”.
Design em São Bento – Traços da Cultura Portuguesa junta-se a outra iniciativa semelhante: Arte em São Bento, também promovida pelo primeiro-ministro português desde 2017, que trouxe obras de arte contemporânea para as principais salas da residência oficial, de artistas nacionais como Helena Almeida, Paula Rego ou Pedro Calapez. A primeira visita guiada à exposição Design em São Bento – Traços da Cultura Portuguesa é já neste domingo, 26 de janeiro.
Design em São Bento – Traços da Cultura Portuguesa > Palacete de São Bento > R. da Imprensa à Estrela, 4, Lisboa > T. 21 392 3500 > 26 jan-30 jun 2021, 1º domingo de cada mês, 11h-13h > visitas guiadas gratuitas