Dez associações de ambiente e cidadania juntaram-se para assinar um manifesto em defesa da Reserva Agrícola Nacional (RAN), na sequência de “discursos de autarcas que procuram criar uma falsa dicotomia entre o direito à habitação digna e o direito a um ambiente sadio”. O grupo contesta “que a crise da habitação se resolva com a desafetação de solos de RAN, tendo em conta que apenas 4% do território nacional é ocupado por solos muito férteis”.
Isaltino Morais é o principal alvo destas associações, mas o presidente da Câmara de Oeiras nega as acusações. “Rejeito liminarmente todas as mentiras desse manifesto”, diz, em resposta por escrito à VISÃO, na sequência de um artigo que noticiava a iniciativa.
Questionado se considera que a crise da habitação se deve à existência de instrumentos de proteção do uso do solo, nomeadamente RAN e REN (Rede Ecológica Nacional), o autarca responde que “não é verdade”. “Nunca disse isso. Considero que, quando a lei 31/2014 classificou a natureza dos solos como urbanos e rústicos excluindo o espaço urbanizável, determinou a especulação dos terrenos urbanos. A demonstração mais clara dessa especulação está no facto de os solos urbanos, que em 2014 eram vendidos a €300 o metro quadrado, passaram a ser vendidos entre os €800 e €1600 porque deixaram de estar disponíveis espaços urbanizáveis.”
A VISÃO perguntou ainda se o facto de terrenos que hoje não são urbanizáveis poderem passar a sê-lo através de uma simples decisão administrativa, aumentando exponencialmente o valor desses terrenos, é um fator de risco de especulação e, eventualmente, de corrupção. “Falso”, responde Isaltino Morais. “O facto de terrenos rústicos poderem ser destinados exclusivamente a habitação pública com obrigatoriedade de se manterem na posse do Estado não tem qualquer efeito em termos de especulação imobiliária e muito menos para qualquer fator de corrupção, porquanto destinando-se esses terrenos exclusivamente a construção de habitação pública não entram no mercado privado.”
O presidente da câmara acrescenta que “os preços de aquisição ou de renda no mercado privado naturalmente são destinados às classes possidentes, não aos pobres ou à classe média baixa”. “A essas necessidades quem tem de responder é o Estado. Aos ricos responde o mercado privado.”
A VISÃO perguntou a Isaltino Morais quantos fogos não habitados há no concelho de Oeiras. “De acordo com os censos do INE, existem cerca de 7 mil casas, mas quando se diz ‘não habitados’ inclui-se milhares de apartamentos habitados sazonalmente.”
“Nós continuaremos a fazer habitação, mesmo em RAN”
Carla Castelo, vereadora da Câmara de Oeiras e presidente da Associação Evoluir Oeiras, o movimento de cidadãos responsável pelo manifesto, assegura que a iniciativa “não tem qualquer mentira”. “Partiu de uma preocupação da Associação Evoluir Oeiras com a campanha explícita e verificável por qualquer pessoa (em fontes abertas) do presidente da Câmara de Oeiras a favor da utilização de solos de RAN para construção de habitação pública, criando uma falsa ideia de que a existência de condicionantes à construção como a RAN estaria na base da crise da habitação. Essa campanha de Isaltino Morais de ataque à RAN, em discursos, entrevistas e artigos nos media, foi tendo eco noutros autarcas e em setores do próprio Governo.”
A vereadora dá como exemplo duas sessões da Assembleia Municipal de Oeiras em que Isaltino Morais diz que é essencial desafetar RAN para resolver a crise da habitação. Numa delas, a 26 de abril do ano passado, o autarca diz: “Para nós, a habitação é prioritária. Nós continuaremos a fazer habitação, mesmo em Reserva Agrícola Nacional. Continuaremos a fazer habitação, e eu espero que na Reserva Agrícola Nacional. Não fazer na Reserva Agrícola é fazer a vontade ao Evoluir BE, é continuar a manter as pessoas sem habitação.”
A 4 de abril deste ano, Isaltino Morais refere explicitamente que a autarquia deve comprar terrenos de RAN baratos e depois urbanizá-los. “Não vamos comprar a €1600 [o m2] para fazer habitação social. Vamos comprar no máximo a €200. E o ideal é comprar a 50, 70, ainda em Reserva Agrícola, e depois desclassificar, urbanizar e construir. É assim que deve ser. Caso contrário, é uma miragem. (…) Manifestam-se a exigir habitação, mas depois dizem que não se pode construir mais habitação.” O presidente da Câmara de Oeiras adianta que só é possível resolver a crise da habitação desclassificando áreas de RAN. “Acho que é necessário, para resolver os problemas de habitação deste concelho, desafetar Rede Agrícola. Não tenho nenhum problema. Desafete-se a Rede Agrícola.” Na mesma sessão, o autarca acrescenta que está “farto de dizer ao Governo” que não se pode ter habitação pública apenas recorrendo ao PRR. “Tem de ir mais longe e estou convencido de que o Governo vai lá chegar.”
Já no discurso de tomada de posse, a 15 de outubro de 2021, Isaltino Morais havia sido claro quanto à sua posição: “Vimos defendendo que sejam libertados solos de Reserva Agrícola exclusivamente para construção de habitação de renda apoiada ou renda acessível, para as classes sociais que dela necessitam. Não podemos ter Reserva Agrícola a impedir que as pessoas vivam com dignidade.”
“Restam 240 ha de RAN em Oeiras“
A vereadora Carla Castelo realça que não é só a RAN que está em causa. “Além da tentativa de desafetação da RAN, são conhecidos projetos em Oeiras e noutros municípios do País que implicam a desafetação de Reserva Ecológica Nacional. A direção da Associação Evoluir Oeiras desenvolveu esforços junto de outras associações alertando para este problema, até porque tanto a RAN como a REN são instrumentos de ordenamento do território fundamentais para a segurança alimentar e a proteção das pessoas contra riscos climáticos, sanitários e outros.”
Carla Castelo diz ainda que “resta muito pouco da RAN em Oeiras, pouco mais de 240 hectares, sendo uma parte considerável devido à proteção dada pela antiga Estação Agronómica Nacional”. Aliás, continua, já só sobra essa área a sul da A5, a autoestrada que liga Lisboa a Cascais. “Tudo foi sendo desclassificado, para fazer todo o tipo de projetos.”
O manifesto, intitulado “Em defesa da Reserva Agrícola Nacional e da Reserva Ecológica Nacional”, foi assinado pela Associação Evoluir Oeiras, ANP|WWF, Zero, Geota, LPN, Quercus, SPEA, FAPAS, Campo Aberto e SOS Quinta dos Ingleses.