A renúncia de Bento XVI, talvez o gesto com mais impacto na Igreja Católica desde que João XXIII convocou o Concílio Vaticano II, dificultou a tarefa do colégio cardinalício que tinha de escolher um novo pontífice. Que fazer para que o papado não fosse inexoravelmente diminuído pelo acontecimento e pela presença do cessante? Era necessária, e depressa, uma resposta brilhante que convencesse as bases e inclusive, se possível, as tornasse mais fortes e mais amplas. Então alguém recordou (pode ter acontecido assim, não tenham dúvidas) uma reunião de bispos da América Latina que decorreu em Roma, depois da morte de Paulo VI, e que acabou com uma única conclusão: escolher um Papa que soubesse sorrir. A saída era retomar essa proposta. Não precisavam de um perfil intelectual que questionasse onde estava Deus durante o Holocausto mas de uma figura de consolador capaz de gerar empatia e ultrapassar a situação delicada que a Igreja Católica atravessava. Assim nasceu Francisco e com ele a marca atingiu os níveis de atenção que tinha perdido nos últimos tempos. A operação foi perfeita.
Assim nasceu uma estrela
O homem político que, neste fim de ano, nos olha das capas das revistas mais importantes do mundo é militante, desde sempre, de uma forma de vida austera. Quando foi eleito arcebispo de Buenos Aires decidiu, como depois fez no Vaticano, manter a sua casa na cúria, em vez de se mudar para a sede episcopal. Optou pelo transporte público e pela comunicação direta, chegando ao ponto de mandar instalar uma linha telefónica só para estar em contacto com os sacerdotes que o procurassem. Os que o biografaram quando se chamava Jorge María Bergoglio definiram-no como tímido e esquivo, de poucas palavras, atento, frugal. Sem ser um grande orador, acontecia ser aplaudido ao terminar uma homilia, como em Aparecida, Brasil, no âmbito do Sínodo da América Latina, em 2002. De algum modo, poderia dizer-se que nasceu ali uma estrela com a qual as pessoas queriam ser fotografadas e que chamou a atenção dos caçadores de talentos. O curioso é que a singularidade e o brilho que este homem emana não resultam da púrpura do papado nem dos vinte séculos de história da Igreja Católica mas sim de uma tentativa pessoal de ser útil a partir dos códigos estabelecidos pelo Evangelho e pelo momento fundacional dessa instituição. Por outras palavras, antes de ter obra em Roma, foi reconhecido como arquiteto magnífico, o que, de alguma forma, tanto o obriga a ele como aos que devem vigiá-lo para que não se afaste da ortodoxia. Até quando o novo Papa continuará a beneficiar do estado de graça que hoje tem perante a opinião pública, é uma pergunta legítima. A outra é até quando as estruturas do Vaticano lhe permitirão comportamentos que rompem os hábitos e até o fazem parecer um excêntrico ou um bicho raro na corte vaticana.
E, o que é mais grave, até onde poderá expressar dúvidas em questões que, sendo de costumes, são consideradas bandeira pelos setores mais conservadores ou diretamente reacionários da Igreja. Está por saber se o jesuíta que homenageou o fundador dos franciscanos ao escolher o seu nome poderá ir muito além dessa escolha, se não será devorado pela teia de normas que o Vaticano acumula e que, escoradas como estão em razões dogmáticas e de fé, nem a cúpula da organização nem os crentes podem vencer facilmente.
Que pode fazer o Papa?
O Papa Francisco trouxe ar fresco à vida pública. As suas declarações abriram perspetivas mas, como dizia um porta-voz do Vaticano, deitando água em certas fervuras, «no fundo, se virem bem ele repete a doutrina tradicional da Igreja noutro tom e com outras palavras». O que pode fazer um Papa numa instituição tão regulamentada? Pode propor que as mulheres sejam consideradas, de facto e de direito, iguais aos homens ou vai prosseguir o discurso do elogio retórico e das referências marianas, numa tentativa inútil de justificar a exclusão histórica? Pode propor uma norma que acabe com a estultícia do celibato dos padres? Pode propor a mesma categoria salvífica para o amor heterossexual e homossexual? Isto para colocar apenas três questões óbvias.
Poderá Francisco vencer os conservadores que sabem que abrir todas as portas da Igreja todas, não apenas algumas a mulheres, homossexuais ou sacerdotes casados seria uma revolução que punha em risco o poder secular do Vaticano? Quanto pesa a ortodoxia perante a liberdade? Fazem-se apostas dentro e fora da Igreja.
Este Papa já dura mais tempo do que João Paulo I, aquele efémero pontífice que ousou perguntar pelas finanças do Vaticano e morreu poucos dias depois. Bergoglio cumpriu 76 anos este mês, a sua força é evidente, mas Paulo VI também era forte e segundo algumas pessoas que trabalharam diretamente com ele viveu em estado permanente de depressão diante da impossibilidade de pôr em prática as conclusões do Concílio Vaticano II. Daí a urgência de um Papa que sorrisse, expressada pelos bispos latino-americanos, nas vésperas do primeiro conclave de 1978.
Quando se reuniram para nomear outro Papa, mês e meio depois, os sorrisos já não eram a preocupação. A eleição do polaco Wojtyla foi o enterro do Vaticano II urbi et orbe, porque não houve lugar no mundo que João Paulo II não visitasse com a mensagem estatuída e os símbolos mais rançosos e obsoletos, os que Francisco I vai enfrentar se não quiser cair no abatimento.
Não pode dizer-se que o Papa Francisco seja um representante da Teologia da Libertação, mas os teólogos que representam esta corrente saudaram-no com esperanças e urgências. Depois das férias de agosto, publicou uma exortação, a Evangelli Gaudium (A Alegria do Evangelho), na qual reproduz textualmente algumas das suas intervenções em Buenos Aires quando era o arcebispo da capital argentina, o seu país. Disse, então, o que agora reclama da cristandade: «Muitas vezes agimos como controladores da graça e não como facilitadores. Mas a Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida difícil.»
Um tipo duro de roer
A trajetória do homem que nasceu com o nome Bergoglio assenta na experiência. É professor de Literatura, psicólogo e teólogo. Dançou tangos e teve namoradas. Fez-se jesuíta quando outros abandonam o convento e nunca desistiu da militância no clube de futebol de San Lorenzo. Discutiu-se o seu papel quando era superior-geral dos jesuítas e a ditadura torturava e matava os melhores, mas hoje sabe-se que os seus encontros com a cúpula militar não foram para abençoá-la mas para interceder por dois jesuítas que estiveram desaparecidos.
Embora não tenha sido visto a circular na Plaza de Mayo com as mães a quem chamavam loucas porque procuravam, sem tréguas, os seus filhos sequestrados pelo Estado, é verdade que as consolou e elas vão morrendo sem se sentirem ofendidas pelo homem que um dia disse «há que pôr a pátria ao ombro para engrandecer o país».
Poucas vezes o sentido da responsabilidade coletiva foi tão claro. Com sarcasmo, chegou a afirmar, numa sonora homilia, que o sistema caiu num cone de sombra e desconfiança: «Algumas promessas soam a cortejo fúnebre: todos consolam os familiares, mas ninguém levanta o morto.» Dizem que é impossível conhecer o que pensa um jesuíta e ainda menos se é um príncipe da Igreja, teólogo e psicólogo, que com a mesma serenidade cita a Virgem de Fátima ou Borges, de quem se declara devoto.
Não quer falar de si mesmo nas entrevistas, mas a sua biografia pode traçar-se com a força dos factos e os factos demonstram que não é um homem acomodatício e que se alguém quiser seduzi-lo não será com lisonjas ou com promessas de introduzi-lo no Parnaso. De longe, que é de onde o observo, parece um bom tipo, duro de roer, implacável como opositor porque, dizem, é rápido na resposta e a sua inteligência supera amplamente o que se define como normalidade.
Tampouco treme diante do poder, nem quando litiga como aconteceu com o Presidente Nestor Kirchner, nem quando lhe mostram a bandeira branca, como fez a Presidenta Cristina Fernández ao felicitálo por ter sido eleito Papa. Então Francisco depositou-lhe dois sonoros beijos na face e os argentinos aplaudiram como se tivessem ganho outro campeonato de futebol. «Este Papa é um Maradona da cristandade», comentava um jornalista desportivo.
Será Bergoglio a cortina de fumo da crise atual da Igreja ou o renovador que tantos setores pedem para evitar a asfixia do fundamentalismo anacrónico? A seu favor está o facto de ter iniciado a transparência e o saneamento das estruturas económicas e financeiras do Vaticano, destituindo os responsáveis máximos, cardeais incluídos, e rodeando-se de especialistas de confiança.
Essa é a lavagem interior. Para saber que Igreja o corpo místico de Cristo tem, qual o seu perfil e com quem conta, lançou uma série de perguntas, mas é possível que as respostas cheguem mediatizadas pelo uso que os bispos façam delas. Nem todos brindaram entusiasmados à eleição «aventureira » de um «amador» nas coisas da governação, alguém capaz de questionar se há algo mais humilhante do que não poder ganhar o pão. O pão nosso de cada dia.
POR PILAR DEL RÍO*
*Jornalista. Quer entrevistar o Papa e aproveita a ocasião para solicitar um encontro. Pastores e porta-vozes tem a Igreja. Obrigada.
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