Recebi um email. Dizia que uma mulher tinha sido baleada na cabeça muito perto da minha casa. Era muito conhecida no bairro, dona de um restaurante antigo, Guimas, um clássico carioca, onde estive várias vezes, e que faz parte da minha paisagem diária.
Fechei a tampa do computador. Tinha um encontro de trabalho com um correspondente espanhol, no outro lado da rua, muito perto do lugar do homicídio. No curto caminho dei de caras com uma amiga minha que trabalhou por muito tempo no Guimas, que era parte da casa, próxima dos donos. Demos a mão, disse-lhe o que se diz nestas ocasiões, em que importa falar pouco e estar – simplesmente estar -, aceitando esse estado indefeso, impotente e humano que resulta de sabermos que podemos dar pouco além do toque.
Maria Cristina, a mulher assassinada, tinha levantado dinheiro no banco, para pagar aos empregados, e encaminhava-se para o restaurante. Quando escolhia saias num vendedor ambulante foi abordada por dois homens numa moto. Não vale a pena contar mais.
Sentei-me numa mesa de esplanada com o correspondente espanhol, também ele habitante da Gávea, e falámos do que acabara de acontecer. Ambos conhecemos alguma coisa desta cidade e não somos estranhos à frequência com que aqui se matam pessoas. Demasiado amiúde adolescentes são torturados e eliminados por traficantes, polícias executam bandidos, bandidos fuzilam polícias, e são noticiadas mortes passionais, mesquinhas, absurdamente cruéis ou infindáveis latrocínios (palavra que, pela frequência do seu uso, só aprendi no Rio, e que quer dizer assalto seguido de homicídio).
Nós sentados numa esplanada, bebericando refrescos e, ao virar da esquina, havia tão pouco tempo, uma mulher assassinada – uma mulher com quem nos cruzámos várias vezes, que passeava naquelas ruas familiares e acolhedoras, cheias de árvores e macacos e gambás equilibristas nos fios de eletricidade.
Era a hora da saída das escolas – são muitas na Gávea – e as crianças enchiam a rua. O bairro entra em efervescência assim que o sol começa a baixar, há mais luzes e carros, gente que saiu do emprego, que vai às compras, cachorros e bicicletas, um frenesi de bairro, o nosso bairro – um bairro onde não se deviam matar pessoas com tiros.
Mesmo que, naquela esplanada, falássemos de trabalho e trocássemos as esperadas impressões de expatriados sobre a cidade, embora contássemos histórias e até sorríssemos, sentia-me como se a roupa estivesse demasiado justa, um colete de forças esmagando os pulmões, as costuras picando a pele. Ali, ao virar da esquina, tão perto.
A Gávea é um bairro privilegiado e seguro. É um bairro de teatros e de alguma vida noturna, um bairro onde os vizinhos se conhecem e param para dois dedos de conversa se por acaso se cruzam na rua ou coincidem no café da manhã no bar de sucos; um bairro onde, se estamos doentes, ainda há quem nos traga canja a casa, e onde os pais levam as filhas ao ballet de bicicleta, onde rapazes jogam futebol na praça e os colégios mais caros estão paredes meias com escolas públicas, maioritariamente frequentadas por alunos da Rocinha.
No meu bairro há uma esquina por onde passo (e sobre a qual penso) muitas vezes. Entre a rua Marquês de São Vicente e a Praça Santos Dumond, exatamente na calçada que fica diante do balcão (aberto para a rua) do restaurante Garota da Gávea, estão sempre dezenas de crianças esperando o autocarro depois da escola. Fardados despojadamente como seria de esperar no Rio – apenas uma t-shirt branca com o símbolo da Prefeitura -, miúdos e miúdas ficam ali, conversando e brincando, sentados no degrau do restaurante, enquanto os bebedores de chope sugam os seus cigarros e admiram o movimento da rua ao cair da noite. As crianças, os transeuntes (muitos) e os clientes convivem nesse equilíbrio improvável, mas fácil aos cariocas. Enternece-me essa coexistência, a descontração e o imediatismo, mas sou incapaz de ficar alheio ao perigo: aquelas crianças estão a um metro da estrada, numa curva geralmente feita pelos ônibus em alta velocidade, e, porque conheço a propensão desta cidade para os acidentes, para o descuido e as desgraças, questiono-me sempre porque razão as crianças não ficam noutro lugar, mais seguro.
Há semanas que pensava em escrever sobre essa esquina. Todos os escritores padecem da enfermidade de achar que podem reduzir a vida inteira a uma metáfora, e aquela esquina é para mim uma figura de estilo, ao vivo e a cores, que desvela toda esta cidade: a ternura em constante combate com o descaso, a informalidade debatendo-se com as fronteiras de classe, a confusão contínua que, por vezes, acaba por dar certo; e a vida em risco porque alguém se distraiu, não cumpriu, ignorou.
Sei que uma esquina ou uma metáfora são insuficientes para condensar toda esta cidade e muito menos o que se passou hoje. Também sei que o maior dos lugares comuns, quando se fala do Rio, é a contundência da desigualdade e a inclemência do crime. Desculpem-me ser tão previsível e óbvio, mas por mais anos que aqui viva nunca irei acostumar-me a essa inevitabilidade. Tampouco me esquecerei que, na tarde em que mataram uma vizinha no meu bairro, Maicon, o rapaz tatuado do quiosque dos cigarros, puxou da gentileza carioca, hoje tão rara se não mesmo em vias de extinção, e, como se quisesse amparar a tristeza de toda a Gávea, estendeu-me um presente: duas latinhas coloridas, com desenhos de princesas radicais, que tinham lenços perfumados.
“Para a sua esposa”, disse ele.