A final com um brilhozinho nos olhos
José é um português que, como muitos outros, emigrou para o Brasil. No sábado, veio de São Paulo para o Rio, com um amigo que lhe ofereceu um bilhete para a final. Na minha sala, onde dormiu, tentava explicar à minha mulher algo inenarrável: ele, como sempre sonhara, iria ver uma final da Copa do Mundo, e logo no Brasil. No dia do jogo, vestiu uma camisola do Benfica e lá foi ele. Ficou atrás da baliza do golo, e ainda que tenha visto a Shakira com o binóculos que comprara, tenho a certeza que será aquela bola acomodada no peito de Göetz, que chutou sem a deixar bater na relva, que mais lhe ficará na memória de menino que, quando for avô, poderá contar aos netos que esteve na final da Copa do Brasil.
Quando José entrou em minha casa, depois do jogo, perguntei como tinha sido. E ele respondeu mesmo antes de falar – com um brilhozinho nos olhos, exatamente como se tivesse oito anos e acabasse de colar o cromo de Maradona na caderneta.
A minha final
Ao longo de toda esta Copa, tive a sensação que, apesar de estarmos no ano 2014, havia qualquer coisa de antanho; julguei tratar-se das emissões granuladas e saturadas dos jogos, na minha casa – tenho apenas uma antena interior -, que me remetiam para a infância das partidas com “chuva” no ecrã mal sintonizado, quando a voz do comentador, partindo de tão longe, nos garantia que ele estava, de facto, no estrangeiro, um mundo desconhecido, mas apetecível, onde acontecia aquele incrível espetáculo.
Ou talvez fosse apenas consequência de estar, ao vivo e a cores (sem interferências ou eletricidade estática no ecrã), na Copa do Mundo do Brasil, na América do Sul do futebol bonito, o que conferiu a todo este mês uma sensação de magia e improbabilidade. Afinal, tratava-se da mesma sensação que tinha ao ver o calcanhar de Sócrates, os golos de Zico ou as fintas elásticas e insolentes de Maradona.
Para acrescentar, em 2014, repetiu-se a final de 86 e 90, provavelmente os dois Mundiais que mais me marcaram. Na altura, e muito por causa de Maradona, o meu apoio ia inquestionavelmente para a Argentina. Diziam-me que o futebol alemão era de aço e inclemente, que não tinha nem a beleza nem a criatividade do toque sul americano, que os germânicos só pensavam em vencer, sem charme e sem centelha. (Nunca, como quando Carlos Manuel marcou aquele golo em Estugarda, classificando a seleção portuguesa para o Mundial de 86, eu tinha visto tão bem aplicada a história de David e Golias).
Tantos anos depois, e ainda que reverbere em mim o legado de Maradona, acabei por ficar contente com a vitória da Alemanha. Não ao ponto de lançar foguetes ou tocar buzinas, como os meus vizinhos brasileiros, mas ciente de que o futebol continua a ser imprevisível e se mantém em constante mudança e evolução. Os alemães, que em tempos me disseram ser frios e chatos, foram, dentro e fora de campo, a equipa mais feliz do torneio. Simpáticos, justos, decentes, gratos – doaram 10 mil euros à aldeia de Santo André, onde fizeram o estágio -, apaixonados pelo Brasil e pelo espírito da Copa, e praticantes do melhor futebol do torneio. Ontem, no Maracanã, e em todo o país, havia milhares de crianças brasileiras com a camisola da Alemanha, olhando embevecidas para os jogadores alemães como em tempos eu olhei para os brasileiros.
Aliança germânico-brasileira
Com o golo da Alemanha, ouviram-se nas ruas da cidade (pelo menos no meu bairro), as mesmas buzinas, os mesmos foguetes, gritos e esse rumor coletivo de euforia que acontecia a cada golo do Brasil. É verdade que, ao contrário de outras Copas, há mais brasileiros a apoiar a Argentina do que seria de esperar, mas ontem, com a explosão de vozes e batuques após o golo, e com a subsequente festa nas ruas, ficou claro que havia muitos brasileiros a declarem-se alemães desde pequeninos.
Voyeurismo
A evolução técnica nas transmissões de TV permite que hoje vejamos todas as jogadas com um detalhe de telescópio – as caras em esforço de um jogador num carrinho, os pítons cravados numa coxa ou os dentes marcados num ombro. Uma câmara permite-nos até ver uma jogada, do alto, como se tivéssemos olhos de ave de rapina, revelando, como nunca antes, como se desenrola um contra ataque. Mas a obsessão com a proximidade, a urgência de filmar tudo, também traz momentos constrangedores. Se já é penoso ver os jogadores derrotados esperando no relvado que se monte a festa para a entrega da taça que eles acabaram de perder, pior é ser testemunha das imagens de uma câmara colada na cara daqueles que choravam, com a consequente transmissão no ecrã gigante do estádio, o que levou alguns jogadores, numa pulsão masoquista mas incontrolável, a observarem a sua tristeza ampliada como no cinema. Kun Agüero, assim que viu as suas lágrimas enormes no telão, baixou a cabeça. Mas nem assim a câmara se afastou. Permaneceu ali, faminta de melodrama, não percebendo que, mesmo que o choro dos derrotados seja parte da narrativa, não faz falta que o transformemos em tortura mediática.
A Copa das Copas?
Tenho a certeza que a maioria dos visitantes, como já mostram os primeiros estudos de opinião, saíram do Brasil contentes e nem a falta de comida e bebida nos estádios, o trânsito caótico ou os roubos de carteiras irão conspurcar essas memórias. Desportivamente, foi para mim a melhor Copa de que me lembro – se exceptuar dois torneios da minha infância, pois nesse tempo tudo era ainda mais extraordinário e mítico. Não tenho dúvidas de que estar in loco no Brasil, imerso no espírito da Copa, contribuiu para esta sensação de singularidade. Sim, foi uma Copa especial, mas talvez quem aqui viva, mesmo que suavizado pelo mês de festa, não embarque no discurso triunfalista das autoridades.
Porque se profetizou uma desgraça – nada estaria pronto -, e porque a Copa correu com alguns problemas mas, no final, foi um sucesso de público e de futebol, o governo brasileiro puxou os galões e esfregou na cara dos agoirentos que esta era a Copa da Copas. Acontece que o governo deveria comparar o resultado final com as expectativas de uma Copa bem organizada, e não com as profecias de que o torneio nem aconteceria. No aspeto da organização, não foi um falhanço, nem de perto, mas também não foi a Copa das Copas – basta ver que o legado das obras do torneio, prometido para a população – ficou muito aquém do prometido.
Talvez Dilma Rousseff possa aproveitar o sentimento geral, expressado, aliás, na imprensa estrangeira, de que esta foi uma grande Copa. Mas muitos dos problemas manifestados durante o torneio, que não chegaram a sabotar o evento, fazem parte do dia-a-dia daqueles que, depois da final, continuam a viver neste país. E esses sabem que uma Copa do Mundo, mesmo com tanto sucesso, não mudará em nada as suas vidas.
Rir é o melhor remédio
Vídeo da televisão da Coreia do Norte, que anuncia que o país ganhou o campeonato do mundo. Mesmo sem legendas, vale a pena ver este delírio cómico.