Reformou-se há já alguns anos, mas os hábitos mantêm-se. Entramos na sua casa, em Colares, e o computador está ligado, os livros amontoam-se na secretária e nas estantes das várias divisões, e quer se sinta mais ou menos em forma tem sempre um papel e uma caneta por perto.
Miguel Real é um devoto da leitura, da escrita e da cultura, a que tem dedicado toda a vida. Mas agora que as obrigações profissionais abrandaram, embora não lhe faltem recensões aqui no JL e vários livros publicados e no prelo (mais de 70 no total), tem tido tempo para se confrontar, noutro fôlego e fundamento, com as grandes questões da sua existência.
Uma delas é a religião. Com uma educação católica, afastou-se da Igreja aos 14 anos, num ceticismo que se prolongou pela vida fora.
O romance que agora lança, Autobiografia de Jesus, é um ajuste de contas com esse passado e com essas dúvidas, que residem sobretudo no episódio da Ressurreição e na construção que foi feita a partir do percurso terreno de Jesus.
É também uma ficção, com as liberdades que a literatura lhe permite, que prolonga as reflexões avançadas em Nova Teoria do Mal e Nova Teoria do Pecado. Nos episódios que mais conhecemos e nos espaços em branco, Miguel Real imagina um homem que advoga sobretudo o bem e o belo, longe do poder opressor que a Igreja Católica veio a exercer.
Nascido em 1953, Miguel Real (pseudónimo literário de Luís Martins) foi professor do ensino secundário até à reforma. É autor de vários estudos sobre a cultura portuguesa e, como escritor, estreou-se, em 1979, com O Outro e o Mesmo. Tem publicado romance, incluindo de fundo histórico, e teatro, como A Voz da Terra, O Último Europeu e Cadáver às Costas.
Teve uma educação católica, afastou-se da Igreja aos 14 anos, tem um longo percurso como romancista e ensaísta, com diferentes abordagens a temas religiosos. Era inevitável vir a escrever este romance?
Este livro andava na minha cabeça há mais de 60 anos. Na verdade, e como digo na nota de apresentação, começou a ser escrito ainda quando eu frequentava a catequese na paróquia da Penha de França, em Lisboa. Mas só agora, reformado, com mais tempo em casa, com a possibilidade de ler outro tipo de livros, sem as imposições dos trabalhos académicos ou até da crítica no JL, tive o tempo necessário para o escrever. Esta Autobiografia de Jesus resulta tanto dessa inquietação que vem da juventude, quanto das leituras e das reflexões que fiz agora.
O que o inquietava tanto na catequese?
Era, e continua a ser, a Ressurreição, na qual nunca acreditei. Aliás, penso que ninguém na minha turma da catequese acreditava. E foi aí que surgiu um episódio que me marcou profundamente. Preocupado com as reservas que manifestei numa aula, o meu padrinho, amigo dos meus pais, foi falar com a minha mãe. Bem ao jeito da época, mostrava-se irritado com o meu desalinho.
Foi então que ouviu as palavras da sua mãe que nunca mais esqueceu.
É verdade. Palavras de uma enorme sabedoria para uma mulher do povo como era a minha mãe. Perante uma polémica antiquíssima, ela disse ao meu padrinho que a vida de Jesus bastava e que se podia ser um bom católico e fiel e leal à Igreja sem acreditar na Ressurreição. As suas palavras, e a forma como as elaborou (refiro-as na apresentação), nunca mais me saíram da cabeça.
Essas palavras acompanharam a escrita deste livro?
Sim, sim. Não só essas, como as muitas conversas que tivemos quando decidi, aos 14 anos, afastar-me da Igreja. Foram vários os motivos, alguns que não interessa aqui evocar, mas que passavam por essa dúvida.
O Cristo é o mal da cultura europeia. Jesus encerra tudo aquilo que se perdeu. É o Jesus do amor, aquele que vê o Reino de Deus como a grande afirmação da beleza do mundo
O que de fundamental o afastou da Igreja?
Na altura, foi mais instinto do que reflexão. Percebi que a maior parte das altas figuras da Igreja não seguia a doutrina que professava, apoiando-se nas elites civis e nas classes mais favorecidas. Depois, ao longo da vida, fui encontrando outros argumentos. O abençoar dos navios que iam para a Guerra Colonial; o papel torturador que a Igreja Católica teve no século XVI, bloqueando completamente a história de Portugal; a Inquisição; ou a conversão forçada de povos. Não é uma reserva e um afastamento face aos crentes, mas perante a instituição.
Como é que todas essas vivências e novas leituras deram corpo a esta Autobiografia de Jesus?
Quis escrever um romance sobre a nossa civilização que pudesse apresentar uma visão crítica do Cristianismo. E apresentar um Jesus que não é Cristo.
Essa é a grande divisão do romance. Por que razão a faz?
Porque Cristo é uma construção da Igreja enquanto instituição e encerra todo o mal que ela impôs ao mundo. Jesus, pelo contrário, o Jesus meigo, o Jesus bondoso, é para mim o homem mais fracassado da civilização ocidental: morreu consciente de que não tinha o amparo do Pai e com a ideia de que tudo o que profetizou não só não se cumpriu como deu origem à religião mais violenta do mundo.
O que aqui apresenta é um Jesus humano?
Sim, em oposição a um Cristo desumano, construído a partir do lugar do poder e que barbaramente se afirmou na cultura europeia. O Cristo é o mal da cultura europeia. Jesus encerra tudo aquilo que se perdeu. É o Jesus do amor, aquele que vê o Reino de Deus como a grande afirmação da beleza do mundo. Além disso, a Igreja apropriou-se da cultura clássica, grega e romana, revirando esse legado.
Já se vê que este romance é o resultado de muitas reflexões.
E de experiências de vida. Estes são temas que me inquietam há muito e que, de alguma maneira, agora consegui resolver romanescamente. Não estou a provar nada. Quando se escreve uma biografia sobre Jesus ou, neste caso, uma autobiografia, não se afirma o “verdadeiro” Jesus. Isso não é possível, nem nenhum outro escritor o tentou. Mas há muitas informações, a começar pelos evangelhos, que nos podem orientar e interpelar.
Há uma longa tradição literária em torno da vida de Jesus, incluindo em Portugal. Foi influenciado e motivado por ela?
Sim, sim. E o facto de ter dedicado tanto tempo, nos últimos anos, a estudar a obra de José Saramago e a escrever a sua biografia [As 7 Vidas de José Saramago] ajudou muito. A primeira leitura decisiva para o reencontro com a figura de Jesus foi Eça de Queirós, em A Morte de Jesus das Prosas Bárbaras, lida aos 17 anos. Em Saramago encontrei uma ideia que também partilho: a de que o mal é absoluto, o bem é relativo. Estas e muitas outras leituras, nomeadamente de ensaio, influenciaram, mas estamos no território do romance. Não há caminhos a seguir, nem fórmulas. O que me parece importante é que haja romances (ensaios também, claro) que contestem o sentido da nossa civilização.
Numa espécie de contrapoder?
Estou até convencido que, dentro de 100 anos, aqueles heróis que valorizamos, na história e na escola, vão desaparecer ou vão ser reinterpretados criticamente
Exatamente. Estou até convencido que, dentro de 100 anos, aqueles heróis que valorizamos, na história e na escola, vão desaparecer ou vão ser reinterpretados criticamente. Posso dar o exemplo de Vasco da Gama, de quem, aliás, se assinalam agora os 500 anos da morte. Não faltam obras sobre a sua vida e as suas viagens. Não há dúvida que descoberta do caminho marítimo para a Índia é um feito assinalável. No entanto, Vasco da Gama foi um pirata. Desvalorizou tudo o que era diferente e não correspondia à visão que levou de Portugal, a visão da Igreja Católica. Matou, destruiu culturas, impôs uma religião. Gosto do Vasco da Gama aventureiro e marinheiro, desprezo o Vasco da Gama que aterrorizou e torturou os hindus. Não sinto orgulho em pertencer ao povo descendente de Vasco da Gama. O navegador português funcionou para os hindus como os Vikings para os europeus costeiros ao longo da Idade Média, e não temos boas recordações deles, pois pilhavam, escravizavam e destruíam comunidades.
Antes desta autobiografia, publicou ensaios sobre o Mal e o Pecado. Foram reflexões fundamentais para este romance?
Absolutamente. Em Nova Teoria do Mal tentei explicar a relação do homem com o poder e de como isso tantas vezes está ligado à humilhação do outro ou à limitação dos seus direitos. E essa associação entre poder e mal pode ser vista até na pessoa mais apreciada. Em Nova Teoria do Pecado tentei mostrar como o pecado se tornou a categoria filosófica e religiosa sobre a qual a Europa cristã assentou as suas constantes culturais e civilizacionais. É um outro poder, associado a emoções e sentimento humanos muito fortes: o medo e a culpa. E Cristo, não Jesus, representa esta dimensão da religião.
E por que razão não escreveu agora um ensaio?
Sinto-me mais romancista. E no romance encontrei a liberdade para dar a ver a vida de uma pessoa simples, boa, com o bom senso que tanta falta faz hoje em dia. E também para mostrar que apesar dos bons momentos que viveu, e que todos nós vivemos nas nossas vidas, o mal domina sempre tudo. A própria morte é uma prova de que o mal domina a vida.
É o romance de um pessimista?
Talvez. O mundo está a mudar a uma enorme velocidade, a caminho de uma nova civilização, com outros valores e pilares. Não sei se para melhor. Nesse futuro também não sei que lugar terá a Igreja Católica, que me parece em óbvio declínio. O Papa fala e já ninguém o ouve; apela à paz, mas as guerras continuam. Mas não tenho nenhuma solução para os desafios que aí vêm. Não sou político. Sinto, no entanto, que estando o mundo tão torto, talvez seja preciso voltar aos valores de Jesus e da Europa Renascentista, a Europa da arte, da música e da cultura.
Que reações espera que o seu romance venha a desencadear?
Essa é uma dimensão de um livro que eu não controlo. Gostava apenas que o lessem de mente aberta e que nunca se esquecessem que se trata de um romance. É um outro olhar para episódios bem conhecidos. Gostei muito de imaginar a vida de Jesus nos períodos menos conhecidos, como a infância e os primeiros milagres. Também gostei de encontrar um possível primeiro ofício. E de misturar o maravilhamento que se encontra em certas passagens da Bíblia com o maravilhamento que uma vida, qualquer vida, pode ter. O meu capítulo preferido é “Simão, o Mago, e os demónios de Madalena”. Espero, por isso, que cada leitor possa encontrar o seu Jesus nestas páginas.