Vejo a entrada da Casa do Aroal como se tudo tivesse acontecido ontem. Primeiro surgiram as paredes altas, depois foi preciso percorrer o corredor escuro. No quarto do fundo, José Jorge Júnior encontrava-se sozinho. Quando me viu alegrou-se muito, estendeu a mão direita para que eu a beijasse e abençoou-me com fervor, tratando-me pelo nome próprio. Que alegria, eu era a filha do seu filho David. A sua mão ficou durante algum tempo pousada sobre a minha cabeça, enquanto ele pensava na vida desse filho e no nascimento da sua neta. Mas em breve o meu avô se esqueceu de quem eu era, e de um momento para o outro passou a dirigir-se-me como se eu fosse a sua filha mais nova, a minha tia Deolinda. Deolinda vem, Deolinda afasta-te, Deolinda traz-me aquele copo de água. Não havia como não obedecer. Só que essa transfiguração não iria ficar por ali.
Em breve passei a ser também a sua filha do meio, a minha tia Assunção, e logo de seguida, passei a ser a minha tia Maria Jorge, a sua filha mais velha. Maria traz o copo, Maria leva o copo, agora afasta aquele pano. Eu bem queria explicar que não era nenhuma das suas filhas, mas não havia forma de José Jorge Júnior regressar à minha pessoa. A sua mão passava pela minha cabeça, os seus olhos passavam pelo meu rosto, e eu para ele não era eu, eu tinha-me transformado no corpo das várias mulheres da sua vida. Pois além de ser todas as suas filhas, também passaria a ser a sua segunda mulher, a minha avó Elisa, mãe do meu pai, a quem ele chamava Esperancinha. E fui ainda a sua mulher mais antiga, Gertrudes, a mãe dos seus filhos mais velhos, e fui sendo várias outras figuras, incluindo algumas que eu apenas identificava pelo facto de terem sido mencionadas como raparigas com quem o meu avô havia mantido ligações especiais, personagens lendárias, muito mal vistas naquela casa de família. Até que por fim o meu avô enviou os olhos para muito longe, fê-los regressar sobre o meu rosto e voltou a reconhecer-me. Então perguntou-me, muito admirado – “Mas afinal eu estou morto ou estou vivo? Diz-me, minha neta.” Tomou as minhas mãos entre as suas – “Diz-me a verdade. Será que eu já morri e estou a acordar no outro mundo? Diz-me a verdade, minha filha!” Eu disse-lhe a verdade, disse-lhe que ele estava vivo e bem vivo, que se encontrava acordado e bem acordado, e que eu era apenas a sua neta Lídia, a filha do seu filho David. Mas ele não queria acreditar que eu fosse só eu, e que ele próprio não fosse um regressado a este mundo, apenas por um breve intervalo. Nesse confronto, passámos o resto da tarde. Era difícil despedirmo-nos. Eu tinha a ideia de estar a viver um momento irrepetível e prolongava-o. Mas só tive verdadeira consciência da importância de ter feito aquela visita ao meu avô paterno naquela tarde de verão, quando me coloquei diante dos cadernos onde garatujava O Dia dos Prodígios e compreendi que havia encontrado o ponto de vista que me faltava. Um lugar entre o aqui e o além, um espaço indefinido onde os vivos os mortos convivem, e por isso alcançam tudo o que é possível alcançar em termos da nossa suposta sabedoria.