A fotógrafa Fatma Hassona habituara-se a ver a morte rondar o seu bairro de Al-Touffah, em Gaza: perdera amigos e vizinhos, sabia o que era esconder-se num abrigo e sentir fome, mas assumia-se como “testemunha”: a sua câmara fotográfica era “uma arma”. Durante nove meses, a jovem palestiniana manteve videochamadas, muitas vezes interrompidas pelo fraco acesso à net, com Sepideh Farsi. Exilada em França, a realizadora iraniana, 60 anos, quisera entrar em Rafah através do Egito, assim que a guerra rebentou – sem sucesso. Alguém lhe disse que devia conversar com Fatma… O resultado é o poderoso e comovente documentário Com a Alma na Mão, Caminha, que estreia nas salas portuguesas a 18 de setembro. Na pequena janela no telemóvel, vê-se Fatem (como lhe chamavam os amigos): sorriso aberto, a revelar a vida sob escombros e sirenes em Gaza, a mostrar as suas fotografias. Fatma Hassona, 25 anos, morreu a 16 de abril deste ano, quando uma bomba afundou o edifício onde residia com pai, mãe e irmãos – apenas a mãe sobreviveu. 24 horas antes, soubera que Com a Alma na Mão, Caminha fora escolhido para a secção ACID do Festival de Cinema de Cannes. E é já depois da conversa emocionada via telefone com a VISÃO, saída de Veneza e a caminho de Toronto, que Sepideh Farsi envia um longo poema de Fatma, a terminar assim: “Gaza, um vasto mundo para nós, um pequeno quarto para os outros. Um dia, será alguém tão generoso que nos ofereça um pouco mais do vasto mundo? Serás tu?”
No início do documentário Com a Alma na Mão, Caminha, ouvimos Fatem citar o Corão: “Tudo acontece por uma razão.” Olhando para tudo o que aconteceu, essa ideia parece-lhe mais credível? O destino interveio para que Sepideh Farsi pudesse contar a história da fotojornalista Fatma Hassona?
Eu sou uma não crente, confessei-o a Fatem. Agora, continuo a não acreditar. Porque não me parece que este tipo de sofrimento tenha uma justificação. Tudo o que posso dizer é que, de alguma maneira, foi importante eu escutar a história dela e poder transmiti-la aos outros. Não sei se há algo místico nesse gesto. Mas sinto-me feliz por ter tido a oportunidade de fazer este filme. É uma espécie de consolo, porque se eu não estivesse lá [ao telefone], ou se Fatem e eu não nos tivéssemos conhecido ou criado este projeto, a sua alma e a sua história estariam perdidas. E ela seria apenas mais uma pessoa morta, muito provavelmente por causa das suas fotografias. Porque é isso que [os israelitas] estão a fazer. Nunca saberei com toda a certeza o que lhe aconteceu. Mas tantos jornalistas palestinianos têm sido mortos em Gaza, que creio que Fatem seria igualmente morta por causa da sua determinação em documentar a guerra. Mas, agora, eu estou aqui e posso contar a sua história ao mundo.
Sente o peso de ter de substituir Fatem, de ser agora a testemunha?
Não o qualifico como peso. Sinto a responsabilidade de transmitir a resistência de Fatem, a “sua” Gaza, ao mundo. Todos os dias, recebo tantas solicitações… Será que posso permitir-me recusar alguma? Tento aceitar o máximo de convites que consigo. É algo pesado que carrego comigo, porque tenho de falar por Fatem: tento dar o mais que posso às pessoas, mas não posso substituí-la. Este documentário é um prolongamento da sua presença. Fatma era tão vibrante, está tão presente… Tudo isto é uma experiência estranha. Mas sinto-me abençoada por ter essa responsabilidade.
Ter os olhos de uma palestiniana dentro de Gaza é possibilitar uma narrativa diferente sobre o conflito. É também por isso que o documentário se tornou um fenómeno?
O filme é o mais próximo que se pode estar desta guerra, sem estar efetivamente lá dentro. Porque eu também estava fora do território! Mas creio que essa minha decisão, que foi a única possível, foi acertada: fui capaz de ver o que se passava dentro de Gaza porque me aproximei de Fatma e das suas fotografias. É claro que o documentário também foi o resultado de um acidente maravilhoso: podíamos não nos ter dado bem, eu podia ter-me limitado a receber as fotografias dela para depois as usar como quisesse… Mas tivemos uma empatia imediata. E quando perdi Fatem, todos à minha volta sentiram uma perda igual à minha: a minha filha, que tem a mesma idade de Fatma, sofreu, a minha família e os meus amigos ficaram de luto. Porque era eu quem conversava com ela, mas, depois, contava-lhes sobre tudo o que tínhamos conversado. Todos sentimos que perdemos alguém muito próximo. Agora, quando os espectadores veem o documentário nas salas de cinema, dizem-me também que se sentem como se tivessem perdido uma amiga querida, e isso é muito violento e triste. Sim…
Apesar das condições difíceis vividas no território palestiniano, a felicidade, a confiança, o otimismo, a esperança, estão presentes nestas conversas filmadas. Que milagre foi esse?
Acho que é o dessa dimensão humana que existe dentro de nós, e que também toca o cinema. É claro que habitualmente sentimos empatia pelos personagens dos filmes, umas vezes mais, outras vezes menos. Mas o que aconteceu em Com a Alma na Mão, Caminha é o mais próximo que podemos ter de uma experiência muito simples, muito humana e muito profunda.
Resistiu à tentação de editar e “limpar” o documentário: assistimos às quedas da ligação, ao ecrã vazio, aos movimentos bruscos da câmara do telemóvel… Era importante manter a autenticidade também no resultado final?
Essa questão foi muito importante para mim: revelar a imperfeição da imagem, manter o projeto discreto, mostrar a frustração que era ficarmos desligadas…
Fatma escreveu isto nas redes sociais: ‘Se eu morrer, quero uma morte estrepitosa, gloriosa. Não quero ser apenas uma breaking news, ou uma estatística. Quero uma morte que o mundo escute’
Crê que o ataque com bombas que vitimou Fatem e seis pessoas da sua família, incluindo a irmã grávida, a 16 de abril de 2025, está diretamente relacionado com o anúncio da véspera de que o documentário fora escolhido para o Festival de Cannes, assim ganhando um palco mundial?
Faço-me essa pergunta todos os dias… O que sinto é que a responsabilidade de matar uma jovem mulher e toda a sua família, apenas porque ela tirava fotografias, é do exército israelita. Matar poetas, eliminar artistas a sangue-frio, é algo que se faz desde os anos 1960 e 1970, não há nada de novo nesta situação. Acontece na Palestina, acontece noutros países, acontece na Europa. Nós sabemos disso, mas o mundo esquece-se. No Irão, o regime também mata realizadores de cinema. Mas isso significa que devemos parar de fazer filmes? Não. Não se pode parar de tirar fotografias ou de fazer arte ou de escrever poesia. Eu quero responder a essa pergunta, não se trata de “lavar” a minha responsabilidade sobre o que aconteceu. Mas temos de colocar a questão sobre quem mata realmente estas pessoas.
Há quase 200 jornalistas mortos em Gaza desde o 7 de outubro de 2023. Fatma Hassona também foi um deles?
Todos devemos consultar o relatório da Forensic Architecture [agência de investigação que denuncia a violência estatal e empresarial nos média, nos direitos humanos ou nas artes, que, a 14 de maio de 2025, divulgou as suas conclusões sobre o assassinato de jornalistas palestinianos pelas forças israelitas na Faixa de Gaza desde outubro de 2023, no âmbito de Kill the Press, série que quer “honrar o trabalho, a memória e a coragem” desses profissionais]. A sua investigação conclui que Fatma foi um alvo estratégico e que a sua morte resultou de um planeamento diabólico e minucioso. Não se pode dizer que foi um acidente. As autoridades israelitas alegaram que o bombardeamento era destinado a um elemento do Hamas. Acho esse argumento difícil de acreditar.
Fatma diz querer ser “testemunha”. É inspirador observar essa coragem em alguém tão jovem?
Sim, absolutamente. E o título do filme, Com a Alma na Mão, Caminha [Put Your Soul on Your Hand and Walk], é a frase que Fatma usou para descrever o seu sentimento sempre que saía para a rua sem saber se regressaria. “Tenho um sentido de missão, tenho uma responsabilidade”, dizia-me ela. E não mo disse apenas a mim. Fatma escreveu isto nas redes sociais: “Se eu morrer, quero uma morte estrepitosa, gloriosa. Não quero ser apenas uma breaking news, ou uma estatística. Quero uma morte que o mundo escute, um impacto que permaneça no tempo, e uma imagem intemporal que não pode ser soterrada pelo tempo ou espaço.” Quando estávamos juntas, não falávamos sobre a morte: falávamos da vida. Mas este seu testemunho deixou marcas profundas. É impressionante vermos agora todos estes jornalistas, alguns ainda mais jovens do que Fatma, a escrever testamentos: “Se morrermos, sabemos o que estamos a fazer. Morremos de bom grado sabendo que estamos a testemunhar este genocídio.” Fatma tinha 9 anos quando foi confrontada com a guerra pela primeira vez. Portanto, nos últimos 16 anos da sua vida, ela viveu várias guerras, umas atrás das outras. Mas Fatem sentiu que esta guerra era diferente, e que precisava de a fotografar e testemunhar – por si e por nós.
As suas imagens, incluídas em Com a Alma na Mão, Caminha, revelam uma fotógrafa talentosa.
Sim. E Fatem era também uma grande poeta: ela lê um dos seus poemas no filme, mas eu tenho muitos outros escritos seus, em que demonstra simultaneamente delicadeza, fragilidade e força. E um sentido da História, e do seu lugar na História de Gaza e do mundo. Fatem sonhava conhecer outros lugares, sair do “pequeno quarto” de Gaza, mas dizia que regressaria sempre à sua casa, à sua terra.
A dada altura, Fatma diz que a força dos palestinianos é esta: “Não podem derrotar-nos porque não temos nada a perder.” A indiferença torna-se impossível depois de a escutar?
Ela disse-me isso no primeiro dia em que conversámos. Uma frase espantosa, lúcida, sobre os riscos de vida que ela enfrentava por desempenhar a sua missão. Encontrar Fatma foi um milagre: podia não ter sido ela, podia não ter sido eu. Conhecê-la foi uma dádiva que quero partilhar. E com a situação em Gaza a piorar cada vez mais, mostrar o filme, dar a conhecer a sua voz, poderia ter algum efeito.
Teve a expectativa de que o documentário pudesse efetivamente provocar alguma mudança?
Sim. Talvez tenha sido ingénua. Não sei. Acreditei que os políticos sentissem o mesmo impacto que tiveram os espectadores. Sei que eles choraram ao ver Com a Alma na Mão, Caminha: confessaram-me isso em privado. Mas respondem-me assim: “O ritmo diplomático é diferente do ritmo dos ativistas e militantes. E nós precisamos de tempo.” Mas eu não sei o que é este “tempo” nem consigo explicar as lógicas diplomáticas. Vai fazer quase dois anos desde que a guerra começou em Gaza, o mundo sabe que está a acontecer um genocídio, e não compreendo de que mais se precisa para tomar medidas. Se houver vontade, a guerra pode ser travada: é só deixar de fornecer armas a Israel. OK, isso não fez parar a guerra na Ucrânia. A minha opinião é que, infelizmente, hoje os negócios dominam a diplomacia e a política. Este genocídio está a render muito dinheiro a muitas empresas, e é essa a razão por que a guerra ainda não parou.
Encara com cinismo as notícias sobre o anunciado reconhecimento do Estado da Palestina por parte de vários Estados-membros da UE este setembro?
Sim, creio que é um anúncio cínico. Em 1917, a Declaração de Balfour estabeleceu a decisão dos ingleses de ajudar os judeus a constituir uma nação na Palestina. Primeiro que tudo, não cabia aos ingleses tomar essa decisão sobre um território que não lhes pertencia: a Palestina pertencia a quem lá vivia. De acordo com a Declaração, os palestinianos teriam igualmente o seu Estado, mas esta discussão arrasta-se há mais de um século. Ficarei feliz se esse reconhecimento acontecer finalmente, mas o mundo já o deveria ter feito há muito tempo. Esse reconhecimento per se não é suficiente: há que providenciar meios de funcionamento a esse Estado. Não faz sentido um Estado não poder ter o seu próprio dinheiro e ter de usar o shekel israelita, não ter jornais a funcionar, a população não ter direito a vistos, não haver exército nem fronteiras. Isto não é um verdadeiro Estado – é um faz de conta. O reconhecimento do Estado da Palestina não é suficiente, mas seria um importante passo simbólico. Esperemos que aconteça. Todos temos o direito a ter o nosso país.
É impossível não perguntar a sua opinião sobre as ambições de Trump em construir uma “Riviera” na Faixa de Gaza…
O que posso dizer? Trump não consegue sequer gerir a América: o país inteiro está mergulhado num caos. O Presidente americano faz esse tipo de declarações e Netanyahu agradece. Se Trump tivesse boas intenções, a forma correta de fazer as coisas era ele gerir melhor o seu próprio país de maneira a que os americanos não se sentissem tão miseráveis, a sofrer com os cortes de apoios sociais e humanitários e a perda de liberdade de expressão. Israel também está infeliz: isso é visível nas ruas e nas pessoas. Tentar resolver problemas em países distantes sobre os quais não se tem ideia do que realmente se passa lá, fazendo de conta que se pode solucionar tudo através dos negócios… Isso não é nada. Em Gaza, está a acontecer também um ecocídio e um urbanicídio, é uma catástrofe ambiental e humana. Porque é que havia de se fazer uma Riviera na Faixa de Gaza? Quem é que quereria ir lá, a um lugar construído com dinheiro de sangue, em terras ocupadas ilegalmente e de forma criminosa?
O jornalista Edward R. Murrow disse, em 1954: “Uma nação de ovelhas gerará um governo de lobos.” Não há suficientes protestos no mundo?
Nos últimos dois anos, nas chamadas democracias, as vozes que denunciam a perda de liberdades ou as mortes de civis têm vindo a ser canceladas ou presas. Veja-se o caso de Paul Laverty, argumentista do realizador Ken Loach, que foi preso em agosto durante um protesto pró-Palestina em Edimburgo: usava uma t-shirt que apoiava a causa palestiniana, e vai ser acusado de terrorismo. Atingir este nível de repressão na Europa não é insano? Isto lembra o ambiente e a ascensão do fascismo nos anos 1930: preocupa-me que tudo isto seja uma desculpa para muitas coisas que poderão acontecer num futuro próximo. Depois, só poderemos lamentar: “Porque é que não agimos mais cedo, porque é que não nos levantámos em protesto, porque é que não resistimos?” Todos perdemos com este mundo em que há um genocídio a decorrer [em Gaza]. Não é possível “lavar” a situação, a mancha permanecerá. E, um dia, teremos de responder por isto.

