António Portela, economista, 45 anos, três filhos, representa a quarta geração da família à frente do destino da farmacêutica Bial. Os dois medicamentos desenvolvidos internamente, para a epilepsia e para a doença de Parkinson, permitiram a internacionalização, mas outros há que estão já no pipeline. É dos mercados externos que vem agora 75% da faturação da empresa que poderá participar na produção de um novo medicamento para tratar a Covid-19.
A Bial está a produzir mais, nesta fase. Porquê?
No primeiro trimestre, produzimos cerca de 50% a mais do que o planeado. Tivemos um pedido do Infarmed para reforçarmos os stocks. Há um mês, ninguém sabia muito bem o que ia acontecer e muitas pessoas correram a comprar medicamentos para dois, três meses. Sentimos uma enorme pressão. Temos muitos medicamentos para doentes crónicos – Parkinson, epilepsia, diabetes, asma e colesterol –, e as pessoas precisam de continuar a tomá-los, porque estas doenças não desaparecem. Houve um pico grande, a que conseguimos responder, mas agora haverá uma normalização.
Em janeiro, tinham anunciado um plano de investimentos de €48 milhões para desenvolver novos medicamentos para o sistema nervoso central e cardiovascular. Isto ficou em standby?
Não. Procuramos, dentro do possível, continuar com os nossos projetos. Temos cerca de oito novos projetos a avançar em fases distintas de pipeline. Um deles, para a hipertensão arterial pulmonar, está na fase de ensaios clínicos.
Tencionam desenvolver novos medicamentos para a Covid-19?
Não temos know-how nessa área. O nosso conhecimento está no sistema nervoso central, e algum no cardiovascular. E já é muito para a nossa dimensão.
Vai encontrar-se uma vacina para a Covid-19?
Eventualmente, mas não no próximo mês. Há várias empresas, laboratórios, institutos e governos a trabalhar nisso, o que tem sido um exemplo de colaboração entre cientistas de diversas nacionalidades que procuram encontrar soluções. É pena que, noutras áreas, como na económica, estejamos a assistir exatamente ao contrário. Se na Ciência tem havido uma solidariedade e um trabalho de equipa extraordinários, nas áreas económicas e políticas tem havido um distanciamento.
Pode concretizar?
Na Ciência, vemos empresas, laboratórios e institutos a porem os recursos à disposição para acelerar as coisas. Na economia e na política, vemos cada um, cada governo, cada país a guardar as coisas para si, a fechar fronteiras, a tomar decisões sem consultar os outros. É tudo muito mais isolado e não em equipa. Os cientistas estão a partilhar recursos e, assim, rapidamente vão encontrar soluções. Mas não esperemos uma vacina daqui a um ou a dois meses. É preciso tempo para desenvolver e testar. Não podemos esquecer que qualquer medicamento ou vacina tem efeitos benéficos, mas tem sempre potenciais efeitos secundários associados. Seria irresponsável as autoridades porem cá fora uma vacina sem terem feito o mínimo de testes que provem que ela é segura. Não se pode vacinar em massa, sem se ter testado a segurança, sem se percorrer uma série de passos. Mesmo assim, estão a bater-se todos os recordes para se acelerar os processos.
Houve quem avançasse que podia haver uma vacina em setembro. Acredita?
Com a interação que tem havido, não me custa a acreditar. Até pode ser que já se tenha a vacina, mas para começar a vacinar… vai demorar mais uns trimestres até a vacina estar disponível.
Qual pode ser aqui o papel das farmacêuticas?
A capacidade de investimento das farmacêuticas vai ser fundamental em qualquer processo de desenvolvimento. O risco é tão grande e o custo tão elevado que os governos não estão dispostos a investir com este grau de risco.
Estamos dominados por meia dúzia de grandes farmacêuticas. Não há o perigo de elas se comportarem como os poderes económicos e políticos?
Qualquer investimento tem de ter retorno. Para se conseguir chegar ao medicamento, investe-se em milhentas coisas que não dão em nada. Por isso é que a investigação é muito cara. A Covid-19 é um caso especial. Haverá solidariedade, até porque é algo à escala global. A capacidade para produzir milhões de vacinas carece de um investimento enorme.
As farmacêuticas terão de descentralizar a produção?
Mesmo que seja uma farmacêutica a descobrir a vacina, não sei se terá capacidade para produzir o número necessário à escala global. Uma destas empresas que estão a desenvolver um tratamento muito promissor para a Covid-19 fez já uma abordagem à Bial, porque não tem capacidade para assegurar toda a produção. As farmacêuticas estão, por isso, a perguntar a outras se podem fazer partes desse processo. Terá de haver uma colaboração muito grande mesmo na produção. Uma só empresa não terá capacidade.
E a Bial está disponível?
Sim, sim.
Estamos perante uma situação em que a investigação é controlada pelos Estados Unidos da América e a produção pela China e pela Índia. A Europa está condenada a ficar no fim da fila?
Portugal e a Europa têm de fazer uma reflexão muito, muito séria sobre os setores que querem ter. O desinvestimento europeu feito na Saúde, nomeadamente na indústria farmacêutica, é muito preocupante. Estamos muito dependentes de terceiros países. Quando foi a gripe A, isso já ficou patente. Não tendo Portugal a capacidade para produzir, ficamos dependentes do fornecimento de outros. Há uma preocupação muito grande na UE com a disponibilidade de medicamentos, porque as matérias-primas vêm quase todas da Índia e da China. Ora, quando a Índia fecha as fronteiras, há uma corrida enorme às matérias-primas. E, claro, há países que pagam mais, e os preços sobem. Os Estados Unidos da América já estão a trazer alguma indústria de volta. E a Europa tem de fazer o mesmo.
Portugal tem capacidade para produzir?
Há 20 anos, tínhamos três vezes mais fábricas de medicamentos em Portugal. Tínhamos uma indústria farmacêutica muito mais forte. Hoje, temos muitas empresas farmacêuticas, mas pouquíssimas fábricas de medicamentos. E de matérias-primas só temos duas. Perdemo-las, ao longo do tempo, tal como a Europa foi desinvestindo nesta área e deixando que tudo fosse para o Oriente. Temos de ponderar muito bem se queremos voltar a ter uma indústria farmacêutica forte, com a produção cá. Não precisamos de ter tudo aqui, mas pelo menos alguma. Aliás, a comissária da concorrência já deixou um sinal muito claro de que os governos deviam intervir para não deixarem mais indústrias saírem das mãos europeias. Estas crises mostram-nos os pontos em que somos mais frágeis.
Estamos perante uma série de paradoxos? Se, por um lado, há coisas que se globalizaram, por outro percebeu-se que há áreas em que não podemos estar tão globalizados assim?
Os governos de cada país da UE devem fazer uma análise global dos setores que consideram estratégicos. Mas também há outras formas de se conseguir fazer isso. Dou um exemplo: o governo norte-americano tem uma reserva estratégica, enorme, de medicamentos. São as farmacêuticas que mantêm essa reserva, mas não é delas, é do governo norte-americano.
Uma espécie de produto caucionado?
Exatamente. Imagine que tínhamos no armazém da Bial 20% da produção, mas esta seria do Governo português, não nossa. Era uma reserva estratégica para o caso de acontecer um problema qualquer e que só poderia ser usada mediante indicação do Governo. Seria outra forma de assegurar as condições para fazer face ao que fosse necessário.
Nesta corrida à vacinação para a Covid-19, haverá o risco de quem pagar mais ficar na frente?
Isso não pode acontecer. Infelizmente, temos alguns políticos que aparentam funcionar dessa forma. Mas haverá bom senso para encontrar soluções que sejam, o mais possível, harmoniosas.
O Governo português tem tido a atitude mais acertada na condução deste processo?
Esta é uma crise sem precedentes. Não há um histórico; ninguém sabe o que vai acontecer. É sempre difícil, em situações de crise, tomar decisões e saber qual a melhor solução. Aqui, é ainda mais difícil. Não dispomos à data de dados suficientes para perceber se são ou não as melhores decisões. Houve algumas hesitações no início, mas gradualmente foram sendo estabilizadas e explicadas. Sinto-me relativamente tranquilo com o que tem sido feito. No geral, sinto que o Governo tem tomado as medidas certas. E os resultados demonstram que não estamos numa situação tão desconfortável como a de outros países.
Há dois anos considerava que o nosso SNS estava suborçamentado. E hoje?
Tem havido uma suborçamentação crónica na Saúde. Mas temos profissionais de uma qualidade extraordinária, hoje reconhecida em muitos outros países. Infelizmente, muitos médicos, enfermeiros e outros técnicos de saúde têm emigrado, e singram. Até o primeiro-ministro britânico agradeceu a um enfermeiro português! Mas existem muitos assim noutros países. A qualidade da formação dos nossos profissionais é excecional, e nós temos pouca consciência disso. Em investimento, estamos claramente abaixo da média europeia, mas na qualidade da formação estamos acima da média. E isso, nestas alturas, nota-se. A resposta dos nossos profissionais de saúde tem sido absolutamente extraordinária.
O SNS provou ser um pilar essencial?
Absolutamente, mas precisa de ser melhorado e complementado. As debilidades de antes não desapareceram. Teremos de continuar a fazer investimentos em mais profissionais de saúde e em novos equipamentos. E não sabemos como tudo vai ficar depois disto. Estamos a pedir imenso aos profissionais; eles vão ter de descansar em algum momento, não podem continuar a trabalhar sete dias sobre sete dias, como muitos estão.
É economista, como vê o nosso cenário financeiro e económico num futuro próximo?
Os números que nos têm posto em cima da mesa são dramáticos a todos os níveis, do PIB, desemprego, turismo… E será mais ou menos dramático, conforme estivermos mais ou menos tempo bloqueados. Haverá sempre uma fatura no fim. Como vamos lidar com isso dependerá muito da solidariedade europeia. Um país pequeno como Portugal não tem capacidade para lidar com essa fatura. Gostava que houvesse uma resposta forte da UE. Os países mais pequenos e mais frágeis, como Portugal ou a Grécia, precisam da solidariedade europeia. Se ela não existir, vai ser muito difícil.
Defende a emissão de coronabonds? O que deveria ser feito?
Temos de segurar as empresas. Se não formos capazes de fazer isso, perderemos emprego. Se as empresas não produzirem, a economia não crescerá, as pessoas não ganharão os seus salários, não poderão consumir e, portanto, haverá um efeito perverso em toda a economia. Daí termos de saber quando podemos começar a abrir. Os governos terão de investir valores muito elevados para conseguirmos segurar a economia. Como é que serão disponibilizados esses valores? Os Estados Unidos da América estão a pôr dinheiro nas pessoas, o que é uma forma direta de financiar a economia. E enquanto a Europa anda a debater estes mecanismos, a Inglaterra está a imprimir moeda. Se a Europa não conseguir disponibilizar dinheiro suficiente, existe o risco de vir a ficar muito para trás. Portugal vai ter uma dívida enorme, assim como a Itália, a Grécia, a França. Como a UE vai resolver isto? Vai ser cada um por si? E há outra coisa: Portugal depende muito de Espanha, da França, da Itália ou da Alemanha. Se esses países estiverem em recessão durante uns anos é mais outra coisa a puxar-nos para baixo. Tudo isto vai ter de ser concertado para que, como Europa, nos consigamos levantar.
Mais uma vez são os países ricos do Norte a dizer que não estão dispostos a suportar a pobreza dos países do Sul?
Infelizmente é o que temos ouvido de alguns governantes. Vamos ver o que acontece. Se um país atinge uma dívida de 160% do PIB, como a Itália, a tentação que terá, se não se encontrar uma solução consensual, é a de imprimir moeda. E como posso imprimir moeda? Saindo da União Europeia. Se não resolvermos isto poderemos ter problemas. É necessário perceber qual o espírito da UE.
Se estivesse à frente de uma empresa de turismo estaria a pedir ao Governo para pôr isto a funcionar ou para ter calma?
O equilíbrio entre a saúde pública e a economia terá de existir sempre. Começa a haver condições para funcionar, mediante algumas regras. Conhecemos mais sobre os efeitos da Covid-19. Alguns países estão já a abrir as escolas até aos 12 anos, libertando assim os pais para o trabalho. Claro que há riscos, mas temos de pensar em como vamos pôr a economia a funcionar, de forma a não perder mais. Cada semana que passa, estamos a agravar a situação: há mais empresas que vão à falência, há mais pessoas no desemprego. Este é um equilíbrio difícil de alcançar: conseguir compromissos que nos permitam fazer uma vida mais normal, sem que eles comprometam a segurança e a saúde pública.
E depois disto, nada vai ser igual?
Acho que nos vamos abraçar mais, quando o pudermos fazer. Vamos valorizar mais algumas das pequenas coisas, mais pessoais e emocionais, na forma como convivemos uns com os outros. Às vezes andamos tão preocupados que nos esquecemos das coisas mais básicas e importantes. Vamos valorizar mais isso. Mas inevitavelmente haverá negócios que se vão alterar. Provavelmente, vamos viajar menos, habituarmo-nos a fazer as coisas mais à distância. O digital vai disparar. Estamos todos muito mais digitais do que há um mês.