Faltam camas, espaço para os pais dormirem, casas de banho privativas, uma sala para fazer a colheita de sangue sem que as outras crianças tenham de assistir. Há anos que estas e outras queixas dominam grande parte das conversas de corredor entre médicos e enfermeiros do Serviço de Pediatria do Hospital de Santa Cruz, em Carnaxide (Oeiras), uma das unidades de saúde de referência no País especializadas em cardiologia. A necessidade está identificada e o plano traçado: será construído um novo edifício junto ao atual. Há dois anos que a obra está prometida e três quartos da mesma serão pagos pela Câmara Municipal de Oeiras. Mesmo assim, a primeira pedra não pode ser colocada enquanto o Ministério das Finanças não der o seu aval, para o qual ainda não tem data prevista. Situação difícil de compreender para os médicos e enfermeiros que ali trabalham e repetem, à VISÃO, a sua incredulidade pelo atraso na construção, “quando há dinheiro”.
“O serviço que lidero está muito necessitado do novo edifício, que terá condições incomparáveis. Somos um centro de referência e temos de estar à altura do grau de complexidade imposto. As instalações são muito antigas e limitadas. Na minha unidade, existem oito camas, quando precisamos de pelo menos 14; há grandes dificuldades com as vagas e não existe lugar para deitar as mães das crianças à noite; muitos quartos também não têm casa de banho”, explica Rui Anjos, diretor do Serviço de Cardiologia Pediátrica do Santa Cruz.
Foi precisamente do corpo médico que partiu a iniciativa, levada ao Conselho de Administração, de pedir obras para a ala. Confrontados com dificuldades financeiras, foram depois bater à porta do gabinete do presidente da Câmara de Oeiras, Isaltino Morais, que disponibilizou cinco milhões de euros (dos quase sete milhões, estimados pelo Ministério da Saúde, necessários para a construção). E foi já a 18 de novembro de 2019 que Isaltino Morais e a ministra da Saúde, Marta Temido, assinaram um acordo com a promessa de recuperação e ampliação das unidades que acolhem os centros de referência de Cardiopatias Congénitas (onde se inclui a Pediatria), Transplante Cardíaco e Transplante Renal, integrados no Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental.
Passaram-se dois anos e, questionada pela VISÃO, a tutela hospitalar indica que a construção só “foi autorizada pelo secretário de Estado da Saúde a 27 de julho de 2021”, permanecendo em silêncio sobre a razão pela qual a permissão não foi dada antes. Todavia, o dossier continua por desatar. De acordo com a resposta enviada pela administração do Centro Hospitalar Ocidental à VISÃO, a nova ala pediátrica do Santa Cruz “encontra-se em apreciação e para aprovação pelo Ministério das Finanças”. Por sua vez, o gabinete de João Leão não se compromete com uma data para a luz verde, remetendo a decisão para “breve”, pois “o assunto encontra-se em análise, em articulação com o Ministério da Saúde”.
2023: a meta “impossível”
Não há contrato. Não há plano arquitetónico definitivo – apesar de vários enfermeiros afirmarem que já viram plantas provisórias para o espaço. E a obra não foi lançada. Ou seja, “não se fez nada”, resume a vereadora das Obras Municipais da autarquia de Oeiras, Joana Baptista, que acompanhou o caso desde o início. “Foram desperdiçados dois anos, quando o dinheiro foi disponibilizado. A ministra veio, tirou uma fotografia, prometeu, mas depois não houve consequência nenhuma”, diz, acrescentando que não terá sido por falta de empenho da câmara, que “várias vezes entrou em contacto com o ministério e com a administração do hospital para tentar perceber porque não avançava o projeto”.
Uma década em contentores no São João
Vítima de polémicas e de guerras políticas, passaram-se mais de dez anos sem que o Hospital de São João, no Porto, tenha conseguido retirar de contentores sem condições mínimas as crianças que ali acorriam. A nova ala pediátrica – que tem mais de 13 mil metros quadrados, cinco pisos, 100 camas e a primeira unidade de queimados pediátricos do País – foi inaugurada, no passado sábado, pelo primeiro-ministro e pela ministra da Saúde. Tinha começado a ser construída em 2015 com donativos, mas foi abandonada quatro anos depois, quando a administração do hospital exigiu que o financiamento de 25 milhões fosse público. Mesmo assim, Costa optou por destacar uma obra “exemplar”, prova de que é possível “fazer acontecer os sonhos”, e Temido desejou que a “perseverança” do São João fosse replicada noutros hospitais como o “Central do Alentejo, o Lisboa Oriental ou na maternidade de Coimbra”. Esquecida ficou a prometida ala do Santa Cruz.
À VISÃO, o Ministério da Saúde avança o ano de 2023 para a inauguração do novo edifício. Ora, quer no hospital, quer na câmara ninguém conhecia a data e, no gabinete das Obras Municipais, a desconfiança é imediata. “Conheço bem o processo de execução de uma obra pública e, no mínimo, para este edifício, são precisos quatro anos até que os utentes possam gozar da excelência do serviço. É irrealista falar em ter a obra concluída em 2023, no estado em que as coisas estão”, aponta Joana Baptista.
A vereadora de Isaltino Morais conhece bem as necessidades do Serviço de Pediatria e até já as presenciou. Faz agora quatro anos, o seu filho mais novo acabado de nascer, dava entrada no Serviço de Cardiologia “com um problema no coração”. Foi a equipa de Rui Anjos que “o salvou”, diz Joana Baptista. Aos médicos, enfermeiros e auxiliares que acompanharam o seu filho, nada tem a apontar, senão “uma enorme capacidade”. Mas, durante o internamento, “foi impossível” que as dificuldades sentidas no piso 4 do Santa Cruz passassem despercebidas.
“O espaço é minúsculo e é muito difícil tratar doentes assim, principalmente, no caso de internamentos mais longos, como normalmente são os das crianças que vêm dos PALOP [Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa] para serem tratadas aqui. Crianças que, muitas vezes, estão sozinhas, sem espaço nenhum, durante dois ou três meses. Tudo isso é visível ali”, acrescenta a vereadora, que sintetiza a mensagem repetida por outros pais nas páginas dos relatórios anuais de satisfação do Centro Hospitalar Lisboa Ocidental.
A nova pediatria
A grande valência do novo Serviço de Pediatria deverá ser a dimensão do espaço com dois pisos e possibilidade de expansão. O edifício autónomo, ligado por um túnel ao central, será construído atrás do principal, no terreno onde agora está um pré-fabricado em que funciona a farmácia – serviço que também passará para a nova construção. O plano provisório prevê também que o novo edifício contenha um serviço geral de cuidados intensivos e uma sala de cirurgia de ambulatório.
Tudo isto sujeito ainda a confirmação da tutela, a quem os profissionais de saúde do Santa Cruz pedem que não repita a história do Serviço de Pediatria do Hospital de São João, no Porto, que funcionou mais de uma década em contentores, porque o edifício prometido e inaugurado no último sábado, 11, ficou refém de promessas que tardaram em ser cumpridas.