Durante o tempo em que decorreu a conversa com Daniel Cotrim – no Irrevogável, programa de entrevistas da VISÃO –, ou seja, em pouco menos de uma hora, pelo menos duas denúncias de vítimas de violência doméstica chegaram às autoridades portuguesas, segundo os dados, referentes a 2021, da Associação Portuguesa de Apoio à Vitima (APAV).
A conversa com o responsável pela área da violência doméstica e de género e pela igualdade da APAV, não é, infelizmente, muito diferente de todas as outras que, ao longo dos últimos anos (ou décadas), se têm repetido sobre o tema. “A violência doméstica tem dois problemas: primeiro, é o crime mais democrático que temos no nosso enquadramento legal, porque é transversal, está presente em todos os géneros, afeta mulheres, homens, crianças, existe em todas as geografias, afeta pessoas de todas as idades; segundo, é um crime que acontece numa dinâmica relacional entre duas pessoas que, um dia, se prometeram amar e respeitar, e que, por isso, prometem dar-se a si mesmo uma nova oportunidade, pois acreditam que o dia de amanhãvai ser melhor”, começa por dizer Daniel Cotrim.
O problema está identificado, mas o combate ao “ciclo da violência” parece ainda estar para durar. “A violência doméstica é, apenas, um exercício errado de controlo e de poder. É isso que está na origem deste fenómeno. E quem nos ensina a exercer esse poder? Os nossos pais e as nossas mães. Se vivermos num contexto em que os homens e as mulheres ainda acreditam que quem manda é o pai, que quem usa calças é o pai, que quem ganha mais ordenado é o pai, que quem tem mais poder no trabalho é o homem, enquanto isso continuar a estar enraizado no nosso pais, então, as coisas não mudam de forma alguma. É isso que alimenta a violência no namoro e no casamento”, explica o responsável.
Envolver a família (e a sociedade)
“O que é urgente?”, questiona Daniel Cotrim. Segundo o psicólogo, o fenómeno justifica-se, em grande medida, na mentalidade da sociedade portuguesa (e não só). Terá de ser, por isso, o coletivo, como um todo, a aprender a lidar com este problema. “O que temos de perceber, de uma vez por todas, é que a violência doméstica não é uma pandemia, mas uma endemia, que está no meio de nós, vive connosco, mesmo ao nosso lado”. “Este fenómeno faz parte da vida de todos nós, porque me perturba, porque existe no meu prédio, porque existe na casa ao lado da minha, porque pode haver alguém que conheço que sofre de violência doméstica. É algo que empobrece o meu país, limita o seu desenvolvimento político, social e económico e, muitas vezes, resulta em desfechos trágicos, como a morte da vítimas. Por isso, justifica a resposta de todos, o envolvimento ativo de todos os cidadãos”, alerta.
“Quanto mais cedo começarmos a falar com as crianças e jovens sobre este tema, mais perto estamos de cultivar uma geração de paz e de não violência. Não podemos, porém, deixar este papel entregue apenas nas ‘mãos’ das escolas, mas também temos de envolver as famílias. Este tipo de ‘ferramentas’ ligadas à cidadania, à igualdade e à liberdade podem e devem ser trabalhadas, sobretudo, pelas próprias famílias”, destaca.
Penas mais duras
O psicólogo não tem duvidas: a questão e das mentalidades e não da lei. “Teoricamente, temos uma das melhores lei da Europa em relação à violência doméstica, que faz história, e é cópia de outros enquadramentos legais”, refere – o problema reside na sua aplicação.
“Temos de ter magistrados mais especializados nestas áreas. A violência doméstica é, por vezes, cansativa, frustrante… O problema nesta área é que tudo muda diariamente, ou porque agora a vítima quer retirar a queixa, ou porque agora já não quer prestar declarações, ou porque agora fez as pazes com o agressor, ou porque agora foi ameaçada e tem medo… É difcil. Por isso, muito importante, é os magistrados estarem preparados para as vítimas, que as conheçam, que falem a mesma língua… A formação dos magistrados tem de incluir, obrigatoriamente, a violência doméstica; isto não pode ser algo apenas facultativo”, afirma Daniel Cotrim.
O responsável da APAV dá exemplos: “Muitas vezes pergunta-se à vítima porque razão tolerou o agressor durante tanto tempo… Acho que é chegada a hora de se começar a fazer a pergunta oposta: porque é que o agressor agrediu a vítima? Qual a sua motivação? Não digo que esta pergunta não seja feita pelas polícias e pelas associações, mas se calhar tem de começar a ser feita mais vezes nos tribunais”, destaca, criticando o facto de “muitos destes agressores acabarem por sair em liberdade, absolvidos ou pena suspensa”.
“A ideia é salvar a vida das vítimas de violência doméstica. Porque têm de ser as vítimas a abandonar as suas casas, empregos, terras, que têm de ‘desaparecer? A justiça é que deve aplicar a lei. A vítima pode “esconder-se’, mas o agressor continua lá. Apoiar a vítima é também parar e penalizar o infrator”, sublinha.
O caso Depp vs Amber
Nos últimos meses, o mediático processo que opôs Johnny Depp e Amber Heard devolveu o tema da violência doméstica ao espaço mediático, com o grande público a dividir-se no apoio (ferrenho) aos protagonistas. O processo terminou com a “vitória” de Depp, depois de o tribunal condenar Amber Heard a pagar 15 milhões de dólares (cerca de 14 milhões de euros) ao ex-companheiro.
Daniel Cotrim considera que “há vantagens e desvantagens” quando um caso de violência doméstica tem tamanha exposição. “Estes casos, por princípio ,não ajudam em nada a discutir a problemática. A desvantagem é que colocamos as vítimas na caixa da dupla estigmatização, que nos indica que as vítimas têm de parecer boazinhas ou, caso contrário, já não são vítimas; a vantagem desta mediatização deste processo é que permitiu que as vítimas de todo o mundo percebessem que não estão sozinhas”.
Este é, aliás, um dos grandes desafios dos especialistas: perante o medo e a dúvida, muitas vítimas resistem em tornar o seu caso público. “É muito difícil assumir que somos vítimas de violência doméstica. É algo que faz parte da intimidade das pessoas… Mas é muito importante que as pessoas percebam que a violência doméstica não é cultural, mas um crime. Agora, se vivemos num país machista, patriarcal com uma masculinidade tóxica, com desigualdade, é mais difícil fazermos uma denúncia”, garante, acrescentando que, muitas vezes, quem se dirige ao “sistema” quer apenas “recuperar o agressor,que volte a ser bom companheiro e bom pai”. “O sistema, que não sofre de surdez, é que na grande maioria das vezes é incapaz de responder a isto…”, diz.
Apesar de ser evidente ainda haver um longo caminho para percorrer, Daniel Cotrim fechou a entrevista com uma nota positiva. Pese todos os dados (negativos), o responsável da APAV rejeita o pessimismo. “Sou otimista! Acredito que as coisas mudam”, conclui.