POESIA
1. Aberto Todos os Dias
João Luís Barreto Guimarães
Não é preciso estar nomeada, direta ou indiretamente, para a pandemia de Covid-19 atravessar o novo livro de poemas de João Luís Barreto Guimarães. O contentamento que percorre estes poemas será facilmente reconhecido pelo leitor como seu. É a alegria de estar de regresso ao café onde se escreve um poema, de se abeirar da margem do rio, de lhe ver as gaivotas e embarcações, de poder afirmar, sem constrangimentos, os pequenos gestos do dia a dia. Mas Aberto Todos os Dias, que se publica na sequência da atribuição do Prémio Pessoa ao poeta e médico, é também a celebração da aurea mediocritas defendida por Horácio nas suas odes. O louvor da vida simples (que, para muitos, a pandemia também veio revalorizar). Nesse sentido, o livro divide-se nas quatro aspirações do homem do Renascimento (locus amoenus, beatus ille, tempus fugit, carpe diem), decantadas em poemas que buscam um ideal de vida ou a integridade de cada momento. No seu reverso, também se assume a certeza de que o tempo corre imparável, sem se repetir. Aberto Todos os Dias convoca constantemente o leitor (leia-se o poema O Leitor Acaba de Virar a Página) não para uma intimidade partilhada, mas para o fazer parte da poesia, aquela que olha para as coisas banais e anónimas, na certeza de que “escrever é/ fazer existir o que antes não existia”. Quetzal, 88 págs., €12,20
2. Quem me Comeu a Carne
Francisca Camelo
No amor, como se sabe, “há sempre mais náufragos/ que marinheiros”. E cantar a dor própria ou alheia, verdadeira ou inventada, sempre foi matéria da poesia. O novo volume de poemas de Francisca Camelo, Quem me Comeu a Carne, assume esse tom elegíaco, lutuoso, para dar voz à esperança nas “marés que virão”, sem esquecer “as noites de artilharia”. Nascida no Porto, em 1990, estreou-se com Cassiopeia, em 2018, a que se seguiram os livros Photoautomat, O Quarto Rosa e A Importância do Pequeno-Almoço. Em todos se evidenciou uma voz feminina, sem tabus nem convenções, que também sobressai neste novo título. Em três secções, com três dezenas de poemas, procuram-se versos que permitam “assumir a queda/ ou o erro/ ou o fim do fim da barbárie/ e quem sabe/ voar”. Em tempos passados, iras alheias, em murmúrios dentro duma casa ou nos alçapões da dor, qualquer que ela seja. Nova Mymosa, 52 págs., €6
3. Adriano
Tatiana Faia
Foi com Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, lido na adolescência, que Tatiana Faia (n. 1986) percebeu “que frequentemente não há melhor maneira de entender o mundo dos vivos do que olhando para ele a partir do olhar dos mortos”. A sua obra poética, que se iniciou com Lugano, em 2016, e que inclui ainda Um Quarto em Atenas e Leopardo e Abstração, tem sido um dos meios (o outro é o seu percurso académico em Estudos Clássicos) de declinar esta ideia. Mas essas glosa e interpretação (do passado e do presente através dele) fazem–se sempre através dos reflexos que a figura eleita, neste caso Adriano, teve ao correr dos tempos. Em ruas, em objetos, em moedas, em pessoas anónimas ou em poetas de outras épocas afirmam-se laços e ligações (reais, melancólicas ou intuídas), numa procura que tem tanto de individual como de coletiva. No Adriano de Tatiana Faia espelha-se a nossa humana fragilidade. (não) edições, 78 págs., €12
4. Cada Gesto Essencial
Raquel Patriarca
E, de repente, uma flor. No meio do jardim, da vida e do poema. Cada Gesto Essencial assinala a estreia na poesia de Raquel Patriarca e traz a marca do espanto pelas pequenas coisas do quotidiano. Com um percurso na literatura infantil e no conhecimento aprofundado de um lugar (tem várias obras sobre o Porto), a escritora transporta nestes versos a força do sonho e da intimidade, num diálogo por vezes silencioso, por vezes dirigido a alguém. É também uma poesia que evoca não só memórias (“Quero escrever um poema/ para uma tília que em tempos conheci”, lê-se na abertura), mas também a própria consciência da passagem do tempo e da perda que sempre acarreta (“É breve o tempo/ de fazer alguém. É breve o desfazer”). Com 37 poemas, dividido em três secções, Cada Gesto Essencial é a procura de um lugar próprio – pessoal, identitário, poético –, no qual uma flor possa nascer “entre o granito e o pensamento”. Officium Lectionis, 72 págs., €12
FOTOGRAFIA
5. O Livro da Patrícia
David-Alexandre Guéniot
A fotógrafa e editora Patrícia Almeida morreu no dia 21 de novembro de 2017, aos 47 anos, na sequência de um cancro. Tinha um projeto em curso, uma espécie de “História Pessoal da Fotografia”, a partir das suas experiências, investigações e leituras com e sobre imagens fotográficas. De algum modo, este precioso livro cumpre o seu desejo, mas essa “história pessoal” é, agora, outra; o ponto de vista alterou-se, necessariamente. O Livro da Patrícia foi escrito e pensado pelo companheiro, David-Alexandre Guéniot. “A recordação tornou-se o nosso único modo de relação com ela”, lê-se numa página em que só existe essa frase, solitária. O volume alterna imagens, documentos, recortes, memórias, palavras. Consegue ser, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a velha relação da fotografia com a vida/morte e um testemunho muito pessoal sobre o modo de se lidar com uma grande perda, o luto (im)possível, a vida que continua. Gustavo, filho do casal, também está presente nestas páginas. “A capa de um livro não se assemelha a uma porta?”, pergunta-se a páginas tantas. E na capa desta edição vemos a imagem da ausência de Patrícia Almeida num autorretrato em que o seu rosto se dilui na luz do flash. Ghost, 304 págs., €20
6. Imagem Foto/ Corpo Lugar
Lucília Monteiro
No estúdio de José de Sousa Monteiro, em Santa Cruz, na ilha da Madeira, o Imagem Foto, havia um pequeno guarda-roupa para as pessoas se porem apresentáveis antes de serem fotografadas. Enquadradas sempre num plano semelhante, com fundos que recriavam uma varanda sobre o mar ou uma imponente escadaria, as diferenças sociais entre os retratados em pose esbatiam-se. São máscaras, a que o fotógrafo há de acrescentar outra máscara, a dos retoques nos negativos, aqui pelo olhar de Lucília Monteiro para tornar visível o invisível. Lucília Monteiro, também ela fotógrafa (e dos quadros da VISÃO), escolheu do espólio do pai, com mais de 200 mil imagens, retratos de estúdio, entre 1955 e 1966, período de grande emigração na Madeira, e sequencia-os seguindo o ciclo da vida. Um conjunto poderoso, que nos fascina e interpela da primeira à última página. Edição de autor, 184 págs., €40
7. Ph.10
António Júlio Duarte
A seguir às imagens de um fotojornalista (Alfredo Cunha), ligadas por definição ao real, na coleção da Imprensa Nacional/Casa da Moeda dedicada à fotografia portuguesa contemporânea (Ph., que já vai no décimo volume) chega a vez de António Júlio Duarte. E a experiência não podia ser mais diferente. Aqui, há sobretudo mistério, pistas e evocações, num livro de fotografia que pode ser visto quase como um livro de poesia: o imaginário do autor interpela-nos, há espaço para o leitor criar, sentir e pensar a partir do que vê/lê. No texto de introdução, escreve Sofia Silva: “(…) abrindo-se ao contexto, as fotografias retêm a sua autonomia, delegando na imaginação o núcleo da sua identidade formal”. Nestas imagens de António Júlio Duarte, realizadas entre 1984 e 2022, há uma melancolia como denominador comum, viagens que tanto devem ao desejo e à energia vital como às sombras negras e à abjeção do mundo. Uma obstinada visão de artista. INCM, 136 págs., €21,60
8. Amor É Um Fogo Que Arde sem se Ver
Eduardo Gageiro
Será impossível saber o que foi a segunda metade do século XX em Portugal sem se conhecer as fotografias de Eduardo Gageiro. Ele é muito mais do que “o fotógrafo” do 25 de Abril – o que já o tornaria enorme. É o fotógrafo do quotidiano invisível de um povo e de uma época, das suas alegrias e tristezas, dos seus gritos mudos e das suas manifestações públicas. Ele é o homem que, desde 1957 e até hoje, com 87 anos, não sai de casa sem ter a máquina fotográfica a tiracolo – como se comprova neste livro de fotos feitas entre 1955 e 2022. Mais uma vez numa edição de autor (como quase todos os seus livros), Gageiro constrói, com cerca de 130 imagens de várias geografias, uma narrativa que se inicia com o amor maternal e se desenrola pelas várias declinações do sentimento: o amor amoroso, o amor flirt, o amor a Deus, o amor de casais, o amor à liberdade, o amor entre avós e netos. O resultado é um livro sobre o amor à vida, espírito com que Gageiro fotografa há 66 anos. Edição de autor, 176 págs., €34,90
FICÇÃO
9. De Amanhã em Amanhã
Gabrielle Zevin
Dúvidas houvesse de que uma história centrada no design de jogos de computador cativasse um público que não pega em videojogos desde a adolescência e elas dissipam-se nas primeiras 50 páginas deste livro de Gabrielle Zevin. No centro da trama estão Sam Masur e Sadie Green, nascidos no final dos anos 70, que se conhecem a jogar Super Mario numa sala de hospital, se reencontram uma década depois numa estação de comboios do Massachusetts e decidem criar um jogo de computador baseado nos seus interesses e histórias de vida. Ichigo torna-se um sucesso mundial e dele crescem uma série de historietas paralelas que alimentam a vida destes amigos-inimigos, na partilha de uma rara cumplicidade laboral que arrasta consigo um certo desequilíbrio emocional, típico dos 20 anos. De Amanhã em Amanhã – Tomorrow and Tomorrow and Tomorrow, no título original, numa referência a Macbeth, de Shakespeare – circula em torno da possibilidade de viver infinitas vidas online, do refúgio dos alter egos virtuais e da descompressão dos jogos, em que é sempre possível recomeçar. Chama à cena vários temas atuais, como a identidade de género, as pessoas birraciais, as políticas em torno da posse de armas e o casamento entre pessoas do mesmo sexo, sem cair em clichés ou soar forçado. Está a ser adaptado ao cinema e é, há semanas, um claro favorito no site Goodreads. Mariana Correia de Barros Edições Asa, 491 págs., €19,95
10. A Mandíbula de Caim
Torquemada
Se gosta de mistérios e quebra-cabeças, este é o livro para si. Mas nele vai ter de aplicar toda a sua intuição. É que A Mandíbula de Caim é um puzzle literário sem paralelo. Foi inventado pelo inglês Edward Powys Mathers, poeta e tradutor que se celebrizou pelas suas compilações de palavras cruzadas. Amante dos enigmas, publicou, em 1934, com o pseudónimo Torquemada, esta investigação detetivesca que chegava aos leitores com as páginas fora de ordem. Ao primeiro a descobrir a sequência correta estava reservado um prémio de 15 libras. O mesmo desafio é agora lançado, décadas depois, aos leitores portugueses. O primeiro a identificar os seis mortos e respetivos assassinos, ordenando corretamente o livro, terá direito a um prémio de mil euros (respostas até 31 de dezembro de 2023). Dizem que só três pessoas, até hoje, resolveram o enigma. Acrescentamos o seu nome à lista? Lua de Papel, 208 págs., €14,90
11. Contos Cruéis
Villiers de L’Isle-Adam
Com o Romantismo, o século XIX redescobriu o sentimento, o inexplicável, o obscuro, numa espécie de reação ao racionalismo do Iluminismo da centúria anterior. A literatura que então se escreveu, com todos os ismos (simbolismo, decadentismo, etc.), é um extraordinário espelho dessa ânsia de humanidade. Autor de histórias curtas, romances e peças de teatro, Villiers de L’Isle-Adam é um representante francês desse sentimento. Como Joris-Karl Huysmans, Prosper Mérimée ou, nos EUA, Edgar Allan Poe, o autor explora o fantástico, o macabro e o sublime, em narrativas também fascinadas pela História e pelos arrebatamentos amorosos (outras das características do Romantismo). Contos Cruéis, a sua obra mais conhecida, é publicada pela primeira vez em Portugal em versão completa, com as 28 histórias que têm tanto de evocação de outros mundos quanto de crítica social a uma burguesia em ascensão. Cavalo de Ferro, 296 págs., €18,85
12. A Promessa
Silvina Ocampo
Na sequência d’A Fúria e Outros Contos e d’As Convidadas, a Antígona prossegue com a publicação da obra de Silvina Ocampo, oferecendo um retrato mais completo da escritora argentina e de um dos nomes mais estimulantes da fértil literatura sul-americana do século XX. A Promessa tem o interesse acrescido de ser a obra que atravessou o percurso literário da autora, num constante labor de escrita e de reescrita. Ocupou-a, aliás, até aos últimos dias, marcados pelo Alzheimer. A sua publicação póstuma, em 2011, 18 anos depois da morte da escritora, fez dele um autêntico testamento literário, no qual Silvina Ocampo recorda, por interpostas personagens, algumas imagens, obsessões e episódios da sua vida, a começar pela atração pelo mar. É nele que a passageira de um navio cai, mergulhando imediatamente numa torrente de memórias, tão inconstantes e imprevisíveis como algumas marés. Antígona, 104 págs., €14
NÃO-FICÇÃO
13. Obras Proibidas e Censuradas no Estado Novo
A 26 de Abril de 1974, menos de 24 horas depois do golpe militar que derrubou o Estado Novo, a sede dos Serviços de Censura, em Lisboa, foi ocupada por populares que, num ímpeto revolucionário, atiraram pela janela centenas de papéis e documentos como forma de enterrar de vez o machado que coartava a liberdade de expressão. O outrora diretor da Biblioteca Nacional (BN), o historiador Oliveira Marques, pediu então a um seu colaborador para ir à Rua da Misericórdia resgatar todos os livros que ainda lá conseguisse encontrar. Ao contrário do que acontecia com a imprensa, habitualmente os livros só eram visados pela censura depois de impressos – “proibido”, “autorizado com cortes”, “autorizado”, sentenciava o censor no exemplar que era guardado, justificando, a maioria das vezes, a suspensão do livro por ser “imoral”, “comunista” ou “pornográfico”. É essa Biblioteca da Censura que aqui se apresenta, em muitos casos com a reprodução da capa e citações dos relatórios dos censores, juntamente com a secção Obras Proibidas da BN, ou seja, os livros que na biblioteca não podiam ser consultados pelo público. São 1322 títulos no total. O investigador Álvaro Seiça e o jornalista José Pedro Castanheira analisam as listas em dois textos, debruçando-se o primeiro sobre os livros na área da literatura e o segundo sobre os editores. Biblioteca Nacional de Portugal, 484 págs., €15
14. Segundo Paraíso: Do Cinema como Ficção do Nosso Sobrenatural
Eduardo Lourenço
O cinema não é um tema que associemos imediatamente à vasta obra de Eduardo Lourenço. Mas o ensaísta, nascido na Beira Alta em 1923, pertencia a essa velha estirpe de intelectuais que sentia curiosidade por tudo. E não era possível olhar para o século XX passando ao lado do cinema… Neste 12º volume da exaustiva publicação das obras completas de Eduardo Lourenço, levada a cabo pela Fundação C. Gulbenkian, com seleção de textos e introdução de Pedro Mexia, fala-se desse “sonho exterior que faz da vida, e não do sonho, o lugar sobrenatural por excelência” (Mexia sobre a visão que Lourenço tinha do cinema). Aqui, podemos ler sobre Marilyn, Brigitte Bardot, Mastroianni, Woody Allen, Bergman, António Reis ou Charlot – personagens que nos levam para o “irreal em estado puro”, o “oitavo céu”, que é o cinema, nas palavras de Eduardo Lourenço. Fundação Calouste Gulbenkian, 210 págs., €22
15. Sombras do Império
João Paulo Martins (org.)
Numa reinvenção muito interessante da sua missão, o Pavilhão dos Descobrimentos tem associado à sua vertente turística um olhar crítico sobre o passado português, nomeadamente no que diz respeito à expansão marítima e ao império colonial. Depois do catálogo Visões do Império, a Tinta-da-China edita agora Sombras do Império, referente à mostra homónima encerrada em janeiro passado. Trata-se de uma revisitação dos edifícios e monumentos criados para a Exposição do Mundo Português de 1940 e sobretudo para o que deveria ser a reconfiguração total da zona de Belém. Dessa vontade sobraram, principalmente, “projetos, hesitações e inércia”, como salienta o subtítulo do livro. Com organização de João Paulo Martins e profusamente documentado com plantas e fotografias, o volume integra ensaios de Pedro Rito Nobre, Joana Brites, Sebastião Carmo-Pereira e Natasha Revez. Tinta-da-China, 176 págs., €29,90
16. A Lição de Eneias
Andrea Marcolongo
Haverá uma boa altura para ler os clássicos? A resposta de Andrea Marcolongo é a conhecida “todas as alturas são boas”. Ainda assim, reconhece, há umas melhores do que outras, em particular se estivermos a falar da Eneida. Nascida em 1987, a escritora e jornalista italiana, especialista em literatura clássica, sempre teve uma relação difícil com a obra maior de Virgílio. Recentemente percebeu a razão: “A Eneida não é um poema para tempos de paz. Os seus versos não se ajustam ao curso sem fricção das coisas.” É nos momentos em que precisamos de recomeçar a partir do zero que este épico sobre os sobreviventes derrotados da guerra de Troia, que mais tarde fundarão a cidade eterna, faz mais sentido. À luz dessa convicção, Marcolongo propõe uma leitura que expõe momentos críticos, ligações a outros clássicos e a sua atualidade, tendo em conta as guerras, pandemias e instabilidades políticas que vivemos. Edições 70, 272 págs., €17,90