Lisboa recebe este mês a Conferência dos Oceanos das Nações Unidas. Save Our Ocean, Protect Our Future é o mote do que pretende ser um apelo aos líderes de todo o mundo para uma ação urgente pelos oceanos. Ocupando mais de dois terços da superfície terreste, os oceanos são decisivos para a biodiversidade, a produção de oxigénio, a regulação da temperatura, o nosso bem-estar e a economia global. Porém, temos com o mar uma relação cada vez mais predatória e utilitarista. Dele retiramos muito e pouco ou nada devolvemos.
O objetivo da UE é proteger 30 por cento das zonas marinhas até 2030. Portugal tinha o objetivo (falhado) de proteger 10 por cento até 2020. A nível mundial, só 2 por cento das áreas marinhas são verdadeiramente protegidas. Quanto ao alto-mar, essa zona de ninguém composta por mais de metade do oceano, há um acordo a ser negociado há quase 20 anos. Faltam regras universais e uma instituição internacional capaz de assegurar a governação e a monitorização do alto-mar. Seria excelente se esse acordo fosse finalmente alcançado em Lisboa.
Talvez por ser algo distante, longe da vista, temos saqueado o mar sem parcimónia e feito dele o nosso balde do lixo, o lugar anónimo onde tudo desagua. Há uns anos, em Timor-Leste, pude testemunhar as trágicas consequências da pesca com recurso a cianeto e explosivos: zonas de recifes de coral outrora plenas de vida e cor, convertidas em desertos monocromáticos. Foi o mais perto que alguma vez estive de um silêncio ensurdecedor.
Da Bíblia, à ciência, a vida começa na água. É ela o nosso útero. Já o mar, tem sido sempre o que nos separa do desconhecido, a nossa última fronteira para escuro (o seu fundo), para o outro (as geografias distantes) e, mesmo, para nós próprios. Na literatura, o mar é passagem e autodescoberta. Na Odisseia, em Os Lusíadas, no Moby-Dick, na Ode Marítima, ou na poesia da Sophia de Mello Breyner, o mar é mistério e iniciação. Diante da sua vastidão, seremos sempre pequenos e vulneráveis, despertos para a viagem. Ora apaziguador, ora perturbador, nele espelham-se os nossos medos e desejos. Por isso, a relação que temos com o mar será sempre a relação que temos com nós próprios.
Em 1974, a artista Marina Abramovic, na altura com 28 anos de idade, apresentou, numa galeria, uma das suas performances mais impressionantes – a Rhythm 0. Ela consistia em deixar-se ficar disponível e sem reação, durante seis horas, permitindo aos visitantes interagirem consigo (e com o seu corpo) como entendessem. Uma declaração assinada isentava-os de qualquer responsabilidade, sendo que estes tinham ao seu dispor vários objetos aos quais podiam recorrer – entre os quais, uma tesoura, azeite, uma rosa, mel, uma pistola e uma bala. De início, os visitantes foram moderados, até que começaram a ser brutais – despindo-a e agredindo-a de diversas formas.
Tal como nesta performance, o mar tem sido esse corpo algo estranho e anónimo, um lugar sem regras – que, por isso, tantas vezes espelha o pior da Humanidade. Provavelmente, para termos uma relação justa com ele, teremos de ter primeiro uma relação justa com nós próprios. Como, não sei, mas deixo uma pista – que tem sido uma bussola para mim.
Há uns anos, perdi uma amiga cujo equilíbrio interior admirava. Uma vez, ela enviou-me um postal com a lista de coisas que gostava de fazer sozinha. Dizia assim: apanhar sol, ler, ver o mar, andar descalça, cozinhar, ouvir música, dançar (as silly as possible), nadar, fotografar, comer, pisar a areia, correr, estar em silêncio, cantar, beber um chá, chorar, fazer yoga, limpar a casa, masturbar-me, tomar um banho, ver um filme, fazer uma caminhada, people watching, deitar-me na relva, meditar.
A Conferência dos Oceanos das Nações Unidas é importante. Mas, provavelmente, para virmos a ter uma relação justa e de aprendizagem com o mar, teremos primeiro de ser capazes de sentir a sua beleza, o seu ritmo e o seu sussurro – e, para isso, como diz um poema de Tolentino Mendonça, teremos de ter a coragem de deixar que ele derrube primeiro em nós tudo o que seremos depois.