Mais uma vez, a miúda açambarcou-me o iPhone. Não me ralo desta vez porque deveria estar aqui sentado a escrever uma crónica sobre Lisboa, sobre os lindos dias de sol nesta cidade. Ia começar pelo passeio com a cadela que dei ontem, uma manhã de outono cheia de luz e sem uma nuvem no céu.
Ia relatar aqui a conversa com o Senhor Pinto da pastelaria, e outra com um homem de idade avançada, um engenheiro de petróleos reformado, que parou para fazer uma festa à Farrusca e acabou a contar-me quase metade da sua vida. E que vida a deste republicano, envolvido na campanha eleitoral de Humberto Delgado!
Mas quis o acaso que, daqui do escritório, o meu olhar abarcasse o globo escolar da minha filha e fosse logo cair sobre a Península Arábica. A seguir, deslocou-se para Oeste, deteve-se na Turquia e o pensamento recuou mais de trinta anos, ao tempo em que o país era governado por uma ditadura militar. Uma ditadura militar laica, entenda-se, ao contrário do atual regime islamista dito democrático.
Mantive o olhar junto à fronteira síria, que se estende ao longo de cerca de 900 quilómetros, e veio-me à memória aquele rapaz curdo que conheci na Alemanha, na primeira metade dos anos 80. Ele devia ser algures daquela zona. Tinha 18 anos e exilara-se para não ir parar aos calabouços da junta militar de Ancara, como outras 650 mil pessoas presas por razões políticas entre 1980 e 1983.
Entre presos de delito comum e presos políticos, o Ministério Público pediu a pena de morte para sete mil. Foram efetivamente condenados 517, mas “só” 50 seriam executados – 26 deles por razões políticas. É o que dizem os dados oficiais turcos. Teria sido esse o destino de Erdogan (era o nome próprio dele) por distribuir panfletos no liceu contra a junta militar e pela defesa do povo curdo, massacrado do lado turco da fronteira pelas forças armadas de Ancara.
Pensei nele e no seu país por causa das notícias dos últimos dias. A duplicidade com que o Ocidente está a lidar com o regime islamista de Ancara atualmente é monstruosa. Já o fora durante a ditadura militar laica da década de 80.
Bem sei que a Turquia é um parceiro da NATO ao qual a União Europeia sempre bateu com a porta na cara pelo facto de ser um país muçulmano – como chegou a ser afirmado por figuras de proa do Partido Popular Europeu, sob cujo teto se albergam os democratas cristãos da UE.
O processo que conheceu vários impasses, mesmo nas décadas de 1990 e 2000, quando aquele país ainda era laico, e empreendeu reformas democráticas, parece ter sido relançado este domingo, 29, em Bruxelas. A Europa está disposta a fazer cedências à Turquia islamista e a entregar-lhe 3 mil milhões de euros para ela conter o fluxo de refugiados que está a abalar a velha Europa. Isso quando já se começa a reconhecer que a própria Turquia teve e tem um papel na causa da crise dos refugiados. São cada vez mais os indícios da sua colaboração mais ou menos velada com grupos islamistas no terreno.
Bem sei que hoje em dia é preciso ser-se pragmático, e que a conversa de Direitos Humanos não se pode intrometer num diálogo que tem de ser pragmático e onde não há lugar para os romantismos que emergiram dos escombros da Segunda Guerra Mundial. Mas assinalo, ainda assim, que ainda este mês a União Europeia reconheceu, num relatório da Comissão, uma regressão da Turquia em matéria de Direitos Humanos nos últimos dois anos.
“Depois de vários anos de progressos a respeito da liberdade de expressão, foram constatadas sérias recaídas nos últimos dois anos”, destaca o relatório, apontando para “falhas” que afetam o poder judicial. Nesse período, as forças policiais ocuparam repetidas vezes as instalações de jornais e de estações de televisão, colocando esses meios de comunicação sob controlo do Governo do presidente Recep Tayyip Erdogan (que, apesar do nome, nada tem a ver com o meu amigo de juventude). Desencadearam-se processos contra jornalistas, intelectuais e utilizadores de redes sociais, e recorreu-se muitas vezes à violência física contra eles. Tudo isso é encarado com “considerável preocupação”. No relatório.
A liberdade de expressão e de informação na Turquia estão sob ameaça. Os Repórteres Sem Fronteiras colocaram-na, este ano, em 149.º lugar no índice de Liberdade de Imprensa, que inclui 180 países (ver aqui). E, em 2013, o Comité para a Proteção de Jornalistas denunciou que na Turquia estariam presos mais profissionais da comunicação social do que em qualquer outro país (aqui). Eram trinta. Atualmente, serão uns sete.
Ainda na manhã de sexta-feira, 27, soube da prisão de Can Dundar e Erdem Gul, respetivamente, o diretor e o chefe da delegação de Ancara do diário Cumhuriyet, conotado com a oposição. “Fomos presos”, twittou Dundar, pelas 11 da noite, hora local. Quando acordei nesse dia já a notícia corria nos media internacionais.
Após três horas de interrogatório, os dois proeminentes jornalistas turcos ficaram detidos sob acusação de “espionagem e de apoio a uma organização terrorista”. Num vídeo gravado antes da detenção, Dundar disse que ele e o seu camarada de profissão estariam a defender a liberdade de imprensa e “o direito de as pessoas serem informadas”. Uma alegação que as autoridades turcas, obviamente negam.
Tudo começou em junho, quando o Cumhuriyet, um diário laico em circulação desde 1924, publicou um vídeo, mostrando como os serviços secretos turcos terão enviado clandestinamente armamento para a Síria. As imagens mostravam homens em uniforme de polícia e em roupas civis a revistarem camiões e a abrirem caixotes que aparentemente contêm medicamentos. Imagens posteriores mostram viaturas carregadas de granadas para morteiro. Pode ver o vídeo aqui. Segundo o site do jornal, tratar-se-ia de material de contrabando enviado pelos serviços secretos turcos para a Síria. “As armas destinar-se-iam, muito provavelmente, ao IS», comentou Dundar, citado pela CNN.
O presidente Erdogan tem uma explicação diferente. Tratava-se de apoio humanitário para a população turquemena no lado sírio da fronteira. E acrescentou: “Quem publicou esta história como um exclusivo vai pagar um preço elevado. Não vou largá-lo.” De imediato foi lançado um inquérito contra os dois jornalistas por “traição e revelação de segredos de Estado”. Arriscam agora uma pena de 45 anos de prisão.
A porosidade dos 900 quilómetros de fronteira entre a Turquia e a Síria tem sido encarada como um caso preocupante, já que permite ao auto-proclamado Estado Islâmico manter as suas linhas de abastecimento. A exportação ilegal de petróleo é a principal fonte de receitas dos terroristas, e esse é escoado através da Turquia, onde é vendido abaixo do preço do mercado. Um contrabando altamente rentável para todos os lados envolvidos.
Segundo escreveu David Graeber, antropólogo norte-americano a lecionar na London School of Economics, num recente artigo publicado no Guardian, há razões para crer que o Governo turco está a apoiar o ramo sírio da al-Qaida, a Jabhat a-Nusra (que se associou ao Estado Islâmico), além de outros grupos rebeldes sírios de cariz islâmico. A lista que prova ou, pelo menos, levanta suspeitas fundadas, já era extensa quando o Instituto para o Estudo dos Direitos Humanos da Universidade de Columbia a publicou, há um ano, na página web do Huffington Post (pode ser consultada aqui).
Com histórias como esta, as do Senhor Pinto e do velho engenheiro de petróleos terão de ficar para outro dia. De preferência com sol.