A Casa Fernando Pessoa (CFP) já tem espaço para todos os seus heterónimos. Pelo menos é a sensação que nos dá ao visitar as instalações remodeladas. Parece mais ampla, mais lógica, mais rica, com todos os objetos mais próximos dos visitantes. Um museu moderno que faz jus à modernidade do poeta, com um circuito racionalmente desenhado, em que o espólio faz parte de um narrativa, enriquecida com artefactos pertinentes, como os habituais conteúdos multimédia ou a ideia de instalação sempre presente, como na sala dedicada ao dia triunfal ou o jogo de espelhos que confronta o próprio visitante com a ideia de heterónimo.
Foram 17 meses de obras, desde março de 2019 até ao final de agosto, em que a CFP teve que deslocar as suas atividades para outros locais. Ironicamente, a reinauguração ocorre em plena pandemia, com as atividades suspensas e as visitas sujeitas a marcação no site, com um limite de cinco visitantes por piso. Clara Riso, diretora da CFP, que nos faz uma visita guiada, mostra-se naturalmente satisfeita com o resultado final e com as muitas novidades que o circuito oferece.
Quando pedimos a Clara Riso (CR) uma visita guiada não imaginávamos fazê-la incluídos em tão “ilustre” companhia. A saber: o poeta, diplomata e anterior ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, o poeta e prof. Nuno Júdice, sua mulher, ex-diretora pela CFP e atual diretora da Casa da América Latina, Manuela Júdice, a presidente da Fundação José Saramago, Pilar del Río, e o ex-administrador da Culturgest e CCB, Miguel Lobo Antunes. Uns mais pessoanos do que outros, vão enriquecendo a visita com opiniões e informações. A exposição, contudo, está tão vocacionada para especialistas como para turistas que tenham contacto com Fernando Pessoa (quase) pela primeira vez. A sua estrutura é essencialmente didática. Clara explica: “Chamamos-lhe exposição de longa duração e não permanente, porque há uma ideia dinâmica, de rotatividade de obras”. Para já, o modelo encontrado emana frescura e interesse. A obra foi da responsabilidade do atelier José Adrião Arquitetos e o projeto museográfico é da empresa de design GBNT, designers Nuno Quá e Cláudio Silva
A primeira diferença que salta à vista é logo na entrada. Passa a fazer-se por uma rampa, lateral à porta principal, a pensar nos visitantes em cadeiras de rodas. Aliás, todo o espaço está preparado para deficientes motores, mas também para portadores de deficiências visuais e auditivos. “A ideia é que seja a mesmo porta para todos, esta é uma casa aberta a toda gente”. A entrada vai dar à cafetaria, que não sofreu grandes alterações, e depois à loja, por onde se faz o acesso à exposição.
A visita tem um sentido descendente, começando pelo piso superior. Cada piso tem um conceito. O 3º é chamado a sala dos heterónimos. E, logo à entrada, vemos projetados no chão dezenas de nomes, correspondente às personas criadas por Pessoa ao longa da vida. “Estes nomes aparecem aqui sem grande explicação, para provocar alguma intriga, mas à medida que se vai avançando na visita, desvenda-se que figuras são estas”, explica CR. E lá estão. Esse desvendar faz-se através do espólio. A exposição insiste sempre nesta dinâmica, da criação ‘artificial’ de um conceito, com uma âncora didática, que se concretiza e valoriza através da exposição do espólio propriamente dito.
Na vitrina estão alguns documentos, entre réplicas e originais, que materializam essa natureza heteronímica de Pessoa. A começar pelo Chavelier de Pas, personagem que criou na infância. Descobre-se o exemplar de O Palrador, o jornal que o poeta fez na infância, para dar a ler à família, ou alguns livros com curiosas dedicatórias. É caso de uma obra de Ponce de Leão endereçado a “Álvaro Fernando de Campos Pessoa”, ou a troca de correspondência com Ofélia Queirós, em que ela própria responde ao heterónimo.
A meio da sala alguns ‘materiais’ pictóricos da maior relevância, como o famoso retrato do poeta por Almada Negreiros, os desenhos de Júlio Pomar e 18 fotos de diferentes fases da vida do escritor. Relevante também, recentemente adquirida pela CFP, é um outro retrato de Pessoa por Almada, desenho a lápis, rosa, sobre papel, datado de 1913. A política de aquisições da CFP tem tido como principal foco os livros, explica a diretora. Continuando a visita, encontramos um espaço dedicado aos mais importantes heterónimos de Pessoa: Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e o semi-heterónimo Bernardo Soares. Aliás, deste, o Livro do Desassossego tem direito a um espaço próprio, no qual se revela o trabalho dos editores, muito importante por se tratar, como se sabe, de uma obra constituída por fragmentos que podem ser organizados de formas muito diferentes. Segue-se uma sala de espelhos, uma instalação que faz com que o visitante se multiplique, confrontando-se com múltiplas imagens de si próprio.
Uma iluminada biblioteca
No 2º piso encontramos o que Clara Riso chama de ‘coração da exposição”. Trata-se da biblioteca particular de Pessoa, os livros que estavam na sua estante. CR salienta que todos foram lidos, anotados, trabalhados – e adquirido pela CFP no leilão do espólio de Luís Miguel Rosa Dias, sobrinho do escritor, falecido em 2019. Entre esses numerosos volumes encontramos, facilmente, pistas da “formação” do escritor. Há muita literatura em língua inglesa, como a poesia de Lord Byron, mas também Walt Whitman, alguns livros de magia e ocultismo, obras a si dedicadas, mas também outras tão curiosas como o manual de Gymnastica Respiratória, de Luís Furtado Coelho. Segundo parece, o seu médico, Egas Moniz, recomendara-lhe fazer exercícios de respiração, e como ávido leitor, Pessoa confiou num ‘livro de instruções’.
Os volumes não estão expostos numa estante, nem seque numa réplica da original, mas antes numa longa e iluminada vitrine, que percorre três paredes, em que se podem observar com clareza e proximidade as lombadas. Um ou outro aparecem abertos, em destaque, com legendas explicativas. Apesar de serem muitos, não correspondem à totalidade do espólio da CFP. Não seria possível expor todos e, também aqui, se obedecerá a uma lógica de rotatividade. Mas quem quiser consultar qualquer uma daquelas obras poderá fazê-lo através da base de dados do site. São 1217 títulos que estão disponíveis para download em PDF. A CFP vai muito além das suas portas e está aberta ao mundo.
Em baixo, no 1º andar, fica a casa propriamente dita. Pintada no chão estão as originais localizações das divisões… A sala, o quarto… Manuela Júdice contesta que o quarto de Pessoa tenha sido aquela divisão interior, consoante está desenhado da sala, e coloca-o do outro lado, junto à janela. Após algumas troca de informações percebe-se que, ao longo de 15 anos, é natural que o escritor tenha mudado de divisão.
Sobre a cama projetam-se palavras, em néon. Também está ali uma arca, que não é a original (a original e a máquina de escrever foram arrematadas em leilão por 50 mil euros, pertencendo agora a um particular), mas uma réplica daquela que se tem vindo a revelar há quase um século, com milhares de textos que não publicou em vida. Antes, encontramos alguns objetos pessoais do escritor, incluindo os óculos, mas também coisas tão curiosas como o estojo de alfinete e gravata do seu pai, Joaquim, uma colher de bebé (com a qual terá comido) ou a sua primeira madeixa de cabelo.
Num espaço à parte, numa das mais conseguidas e exuberantes instalações da exposição, uma representação de “o dia triunfal”, em que, segundo a descrição do próprio Pessoa, terá escrito ou terminado parte dos seus mais famosos textos. Está lá a cómoda, sobre a qual terá escrito tudo, sem sequer se sentar, e uma construção de folhas soltas representando a intempestividade criativa. Castro Mendes recorda que o dia triunfal não terá sequer existido, foi antes o mito criado pelo próprio. Real ou simbólico está bem representado em toda a sua exuberância.
A visita termina ali. Mas vale ainda pena ir à biblioteca. A CFP tem vindo construir ao longo do tempo uma biblioteca com um extenso catálogo de poesia, em várias línguas. Com a reabertura colocaram-se muitos mais livros acessíveis, prontos para serem requisitados, o que pode ser feito através do site. São mais de cinco mil obras, incluindo os livros do próprio Pessoa traduzidos em mais de 30 idiomas. Um autêntico templo para os estudiosos pessoanos, mas também para quem se interessa por poesia.
Em baixo, junto à loja, além de livros e objetos para venda, fica o auditório, não muito grande mas com capacidade suficiente para a CFP manter a política de iniciativas culturais, debates e manifestações artísticas que já vem de trás. Mas para isso, claro, é preciso superar a pandemia.