Conhece bem os cantos à pequena cidade que é o CCB, a sua “muralhinha”, como lhe chama. Francisca Carneiro Fernandes foi a primeira mulher a ser nomeada presidente do conselho de administração da Fundação Centro Cultural de Belém e passou os meses iniciais no cargo a ouvir todos os 232 trabalhadores da casa. “Houve dias duros, escutei coisas que me preocuparam”, diz à VISÃO, quase um ano depois de o seu nome ter sido anunciado para o cargo. A advogada nascida no Porto construiu uma carreira de gestora cultural no Teatro Nacional de São João (de que foi presidente do conselho de administração entre 2009 e 2018), na Ágora, no Teatro Municipal do Porto (de que foi diretora-executiva) e nos projetos dos centros culturais Matadouro e CACE. Tem um caderno de encargos ambicioso no novo MAC/CCB: tratar das rugas do edifício com 30 anos, construir os dois módulos do projeto original em falta (“estamos prestes a assinar o contrato e creio que as obras poderão começar ainda este ano, algo muito importante para a sustentabilidade do MAC/CCB e para uma nova centralidade da zona”) e apostar numa programação que cruza artes performativas e museu. Francisca Carneiro Fernandes quer “fugir do tokenismo” (esforço superficial para ser inclusivo) e criar um MAC/CCB inclusivo e aberto a públicos que “achavam que não tinham lugar no CCB”, eliminando a “visão elitista existente sobre o edifício”. Uma missão para uma “utópica” assumida.
Foi nomeada para a presidência do conselho de administração do Centro Cultural de Belém em outubro de 2023. Um ano de arrumação de casa é suficiente para deixar um cunho pessoal?
Ainda não cumpri um ano de mandato, mas um dos meus grandes desafios era integrar uma equipa que vinha a trabalhar desde o mandato anterior [de Elísio Summavielle] e dar continuidade a coisas que estão a ser bem feitas, sem prejuízo de querer um cunho pessoal no meu mandato e de ter as minhas próprias ideias. Este ano, começaram a fazer-se sentir as linhas programáticas que já vinham de trás, com o trabalho do meu colega Delfim Sardo, nomeadamente o cruzamento das artes performativas com as artes visuais, que é algo que torna o CCB único. Há poucas instituições no mundo que tenham tão grande capacidade de fazer o performativo chegar ao museu. Agora, é continuar esse trabalho sob o cunho de duas direções artísticas próprias – uma de artes performativas e do pensamento com Aida Tavares e outra do museu e das artes plásticas assegurada por Núria Enguita –, o que é uma novidade do MAC/CCB. E já se sente esse cruzamento nas programações. Por exemplo, na celebração do primeiro aniversário do MAC/CCB, a 26 e 27 de outubro, convidaram o bailarino e coreógrafo Xavier Le Roy a fazer uma exposição-performance no museu [no âmbito da exposição Intimidades em Fuga. Em Torno de Nan Goldin]. A 24 de novembro, teremos outro cruzamento muito positivo no espetáculo Aqui, Agora, Neste Momento, de Elizabete Francisca, Mariana Tengner Barros e Vera Mantero. De resto, no mandato que quero fazer, há, naturalmente, prioridades: a excelência da programação e a fidelização do público do MAC/CCB, mas também chegar a outros públicos, democratizar o acesso. Estamos a trabalhar nesse sentido.
No MAC/CCB as artes performativas têm um papel de cidadania?
Sim. A arte faz-nos refletir sobre o mundo e é natural que as instituições culturais queiram pensar nos desafios atuais. Tivemos recentemente um espetáculo muito forte, Depois do Silêncio, da artista brasileira Christiane Jatahy, que se debruçou sobre o racismo, a invisibilidade, os preconceitos, algo que pessoalmente me incomoda muito. Seria importante que se percebesse que o CCB trabalha no sentido de combater esses preconceitos existentes na nossa comunidade. Queremos criar acessibilidades económicas e sociais.
Trabalhou na promoção das artes performativas, nomeadamente enquanto presidente da direção da Performart, mas formou-se em Direito. O que a fez trocar as leis pela cultura?
Acreditar que o mundo sem cultura é um mundo pior. Eu trabalhava com grandes protagonistas culturais do Porto, como a Fundação de Serralves e o Teatro Nacional São João (TNSJ), no escritório de advogados [Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados], e apreendi sobre os grandes desafios e exigências de gestão dos espaços culturais, que se mantêm até hoje. Quando me convidaram a integrar a direção do TNSJ, senti que o que sabia fazer poderia estar focado ao serviço de algo maior, que é o desenvolvimento das artes e da cultura. Não conseguimos viver sem a cultura – ou se vivemos, vivemos muito pior. A cultura estimula o nosso pensamento crítico, do mais comezinho ao mais grandioso. Na semana passada, inaugurámos a bienal Mostra Espanha aqui no CCB, com a presença dos ministros da Cultura de Portugal e de Espanha, e a senhora ministra Dalila Rodrigues referia que temos de deixar de cair na tentação de afirmar a importância da cultura quase como muleta de outras coisas. A cultura é um dos grandes valores da democracia, da plena cidadania e do desenvolvimento da comunidade, e temos de o afirmar sem pejo nenhum.
E a que chamamos, afinal, “cultura”?
Cada vez mais afirmamos a cultura por si mesma. Passámos a fase das “indústrias criativas”, em que parecia que a questão economicista estava sempre à frente. O País atravessou um período complicado com a Troika, exigia-se à cultura que apresentasse resultados imediatos de bilheteira, que se autojustificasse, que dissesse quantos empregos criava ou que riqueza gerava… E depois misturava-se o teatro com a dança ou os videojogos, ou a publicidade, uma enorme confusão. Tentei combater isso o mais possível no TNSJ, porque há coisas que não se conseguem medir – e não é por não serem mensuráveis que não têm valor. Muitas vezes, têm-no ainda mais. Quero acreditar que o País tem caminhado no sentido certo e que há cada vez mais municípios que percebem que a cultura é essencial para o sucesso do seu desenvolvimento e do seu projeto de cidadania. A cultura não está ao serviço do turismo ou da economia. Ponto. São áreas diferentes. As pessoas precisam da cultura tal como de educação, e é preciso deixar de fazer um ranking entre áreas que são necessárias ao desenvolvimento humano por razões diferentes.
Foi saudada como “a primeira mulher a assumir a presidência do CCB”. Isto significa o quê?
Eu não escondo que, para mim, é importante. Sou uma feminista assumida e acho que estamos muito longe da paridade desejada. Existe uma divisão muito grande de direitos, até em coisas tão pequeninas e enraizadas no pensamento que nem nos apercebemos, mas que quem trabalha em lugares de liderança sente. Mas há que acreditar que o caminho está a desenvolver-se e a dar frutos. Aqui no CCB, temos duas administradoras, não sou só eu: a Madalena [Reis, vogal], com toda a sua experiência profissional e visão, que admiro. E temos duas diretoras artísticas. É uma casa com quatro mulheres líderes: o Delfim [Sardo, vogal] brinca e diz que está em minoria. Isto é positivo, e devemos celebrá-lo sem problema nem vergonha.
Esta liderança com mais mulheres foi uma estratégia?
Foi um acaso. As escolhas da Núria e da Mariana Pestana, curadora da Garagem Sul, resultaram de concursos. Não se tratou de uma escolha preferencial por mulheres. A equipa não deve ser só feminina, só masculina, só branca, só negra, só jovem… A Performart – Associação para as Artes Performativas em Portugal desenvolveu um manual inclusivo que está agora a implementar junto das instituições [tem 57 associados a nível nacional], que quer diagnosticar até que nível as instituições são diversas. E foi curioso verificar que a sustentabilidade é um tema muito presente, mas a acessibilidade não é tão trabalhada… O impacto deste trabalho tem sido brutal. Já se notam alguns resultados inclusivos ao nível do recrutamento dos assistentes, mas eu gostaria que a inclusividade fosse ainda mais ampla. É difícil, porque é preciso garantir que as pessoas não vão ser discriminadas, quebrar questões que não estamos habituados a desmontar… Por exemplo, porque é que ainda pedimos uma fotografia no currículo? Há quem se sinta inibido e não envie o currículo porque acha que pode ser discriminado pela cor da pele mostrada na imagem… A nossa comunidade é, hoje em dia, tão diversa: imigrantes, afrodescendentes, tantas pessoas diferentes. Para fazermos o que fazemos bem feito, temos de refletir a diversidade da comunidade. E se formos todos homens brancos privilegiados, a nossa programação não o fará.
Velha questão: as mulheres em cargos de topo ainda têm de provar as suas capacidades em dobro?
Ainda sinto essa pressão, ainda há situações que reproduzem padrões antigos. Mas felizmente também há muitos resultados positivos, e outra capacidade da sociedade e das instituições de acolherem a liderança feminina. Quando entrei para o TNSJ, aos 30 anos, se calhar sentia trabalhadores a pensarem: “Eu não quero ter uma chefia feminina, é uma miúda…” É preciso construir um percurso, dar provas, não me focar na misoginia. Estou a recordar-me do que digo à minha filha: “Não cair nos estereótipos e combatê-los todos os dias com o melhor que temos.” E assumir as falhas. Errar é humano, não é masculino nem feminino.
A atual ministra da Cultura, Dalila Rodrigues, trabalhou no CCB. Isso facilita o diálogo?
Facilita o diálogo porque a senhora ministra conhece muito bem a casa e sabe que, com os seus 31 anos, esta acusa desgaste e tem uma necessidade de investimento gigantesca. Estamos a trabalhar para conseguir financiamento extraordinário, para não ser sempre o Estado a financiar estas operações. Precisamos seriamente de investir nos equipamentos, nos edifícios, nos elevadores…
Pode especificar números?
Podemos estar a falar de sete milhões de euros. É muito dinheiro, mas é para ser executado em três, quatro anos. O ideal seria que tudo corresse bem com os concursos, que os adjudicatários não tivessem questões com falta de materiais ou atrasos que obrigariam a passar a questão para o orçamento seguinte. A contratação pública tem constrangimentos e alguma dificuldade de execução, mas, por outro lado, assegura que estamos a fazer as coisas bem.
Esse orçamento é só para manutenção?
É para grandes obras. Por exemplo, este ano estamos a instalar painéis solares na cobertura, um grande investimento que traz poupança considerável em termos de sustentabilidade. Já lançámos um concurso para os 13 elevadores do edifício, temos de modernizar quartos de banho, melhorar o chão, comprar equipamento atualizado para eventos e palco… O próprio palco tem de ser refeito. Temos de investir na segurança do espaço das reservas. Era também importante verificar os AVAC [ventilação e ar condicionado]. Há problemas de infiltrações em alguns edifícios. Estamos a mudar, aos poucos, toda a iluminação dos auditórios para ser mais sustentável, eficiente e ecológica. Tem de ser feito um planeamento muito bem feitinho: o CCB é uma máquina complexa, não para.
Vão aumentar preços dos bilhetes de acesso como outras instituições fizeram?
Estamos a ir no sentido inverso. Fizemos um rebranding do Cartão CCB e decidimos que este passa a ser gratuito para jovens, reformulámos descontos no acesso à programação e não vamos proceder a aumentos. Queremos investir na acessibilidade física e social do público jovem. Por exemplo, há um preço especial para residentes (€7) e um preço para não residentes, pois sabemos que os nossos preços são baixos para a maioria dos turistas.
O MAC/CCB não tem estado isento de celeumas, como a da escolha pessoal de Aida Tavares para diretora artística sem a sustentação de um concurso. Como responde às críticas?
Acho que a sustentação existe, apesar de não ter havido um concurso. A questão é que, iniciando eu um mandato curto de três anos e estando na iminência de ter uma direção artística para o museu, considerei muito urgente que houvesse também uma direção artística para a área das artes performativas e do pensamento, para trabalharem em conjunto e ter a tal excelência de programação que reflita os valores da administração e da casa. Sabendo que alguém com as valências artísticas e o currículo da Aida, reconhecida a nível nacional e internacional, estava disponível, achei que era justificável. À medida que o tempo vai passado, demonstra-se que essa minha urgência tinha razão de ser, e quero acreditar que já se começa a ver o resultado do que queremos fazer. Um CCB de todos para todos, e onde se encontram todas as artes
Com a mudança de governo crê que ficou com um prazo de validade mais curto no cargo?
Sinceramente, não. Os ministros dão as suas diretrizes e, naturalmente, eu cá estarei para cumprir a minha obrigação. Mas estando dentro de um leque democrático de valores que considero poder cumprir, acho que essa questão não se coloca do meu lado. Naturalmente que o meu trabalho está sujeito à avaliação da senhora ministra, mas não me parece que seja por causa da mudança política entre quem me nomeou e quem está a gerir neste momento, que possa haver problemas. Poderá o meu trabalho ser avaliado negativamente, e aí eu ter um mandato mais curto, mas isso poderia sempre acontecer; os resultados estão constantemente a ser escrutinados e ainda bem que assim é, faz parte dos princípios da democracia. Se o Estado investe tanto dinheiro, tem de acompanhar o que considera serem bons ou maus resultados.
A Coleção Berardo aguarda uma decisão judicial sobre o seu destino. Se os tribunais decidirem a sua saída do MAC/CCB, há um plano B?
Tenho dito que é muito positivo o comendador Berardo ter decidido disponibilizar a coleção para ser vista pelo público português. Compete-me, dentro das possibilidades legais, assegurar um bom relacionamento com o comendador Berardo de forma a tentar manter a fruição pública dessa coleção tão vasta e valiosa, que penso ser do interesse de todos os portugueses, até que os tribunais façam o seu trabalho e decidam para onde vai a coleção ou a quem pertence. Mas não estamos na iminência de os processos terminarem já, e neste momento estamos focados na integração plena do MAC no CCB – que abriu ainda não fez um ano – e nos diálogos entre as coleções que temos. Se essa questão tiver de ser colocada, lá chegaremos.