Recuemos, por um momento, até março de 2017. Uma investigação do The Wall Street Journal revela que anúncios de empresas como a Coca-Cola, Amazon e Microsoft estão a ser mostrados em vídeos com conteúdos de teor racista, homofóbico e antissemita. Seguiu-se um dos maiores boicotes de sempre à distribuição de publicidade digital através das plataformas da Google.
Este episódio negro coincidiu com o 15º ano de Sridhar Ramaswamy na gigante norte-americana. “Foi quando senti mesmo que não estava contente com o meu trabalho. Esta foi uma altura em que havia muitos problemas com conteúdos no YouTube e anúncios a aparecer em conteúdos censuráveis, foi aí que decidi que precisava de fazer algo diferente com a minha vida”, conta em entrevista à Exame Informática, feita à margem da edição deste ano da Web Summit.
Sridhar não era um executivo qualquer na Google. Era o líder de um império que faturou 116 mil milhões de dólares (cerca de 100 mil milhões de euros) só no ano de 2018, altura em que saiu da empresa. Juntou-se à tecnológica, em 2003, como engenheiro de software e foi-se afirmando ao longo dos anos: em 2005 já era diretor de engenharia; em 2008 subiu a vice-presidente de engenharia; três anos depois assumiu a liderança global desta área na Google; e foi depois, em 2013, que assumiu a pasta que o tornaria num dos nomes incontornáveis de Silicon Valley, a de vice-presidente global para a área de anúncios e comércio da tecnológica. Todos podem conhecer a Google pelos serviços como o motor de busca, o YouTube ou o Android, mas mais de 80% do negócio da empresa vem do segmento da publicidade digital. Sridhar era, na prática, o motor que mantinha a máquina gigante da Google a funcionar.
Mas o próprio tamanho e domínio da tecnológica – que na área dos motores de busca roça os 90% de quota de mercado a nível global – começaram a afetar o executivo, agora com 54 anos, natural da região de Tamil Nadu, na Índia. “Sentia-me desconfortável com quão grande a Google se tornara”, confidencia. E fá-lo sem hipocrisia. “É uma grande empresa, pagou a educação dos meus filhos, a minha casa, não tenho problemas com isso”.
O engenheiro é o primeiro a reconhecer que “há sempre pressão para fazer dinheiro, estás sempre a fazer concessões”, sobretudo quando se tem tantas e tamanhas responsabilidades – tecnológica, financeira, societal. “Quando estás numa grande empresa, tens projeções [financeira] e tens analistas com quem falar, há sempre muita pressão, não há qualquer dúvida sobre isso”. O executivo recorda, por exemplo, as situações de emergência em que foi chamado a intervir. “Liderei, pessoalmente, reuniões de crise nas quais estávamos a perder mil dólares por segundo. Queres saber o que é pressão? Do ponto de vista do dinheiro, isso é pressão”.
Mas o responsável recusa a ideia de que a Google, em algum momento, tenha tomado decisões de forma consciente que prejudicaram a privacidade e segurança dos utilizadores em função do lucro. Bem pelo contrário. Cedo a Google virou costas a uma das mais populares e lucrativas franjas de publicidade online, a dos conteúdos pornográficos. Quando a empresa descobriu que havia vendedores de drogas a tirar partido de pesquisas de pessoas que procuravam reabilitação, desligou por completo o sistema de anúncios para aquela categoria durante meses. Existiram e continuam a existir problemas na plataforma de publicidade digital da Google, mas Sridhar sublinha que há problemas que não são fáceis de corrigir. Daí que tenha recomeçado do zero.
A nova vida de Sridar

Existe uma ironia quase poética naquela que é agora a grande missão do executivo indiano: Sridhar Ramaswamy fundou a Neeva, uma startup que disponibiliza… um motor de busca. O antigo executivo de topo da Google, o maior motor de busca do mundo, está a tentar criar um motor de busca? “Sentimos fortemente que um motor de busca livre de anúncios e privado, por subscrição, é um melhor sítio para começar”, conta-nos.
Apesar de a startup ter sido fundada em 2019, o Neeva, enquanto produto, só ficou disponível neste ano. Atualmente é um serviço online que só está acessível nos EUA e no Canadá, com o seu cofundador a garantir à Exame Informática que o objetivo é trazê-lo para a Europa entre o final do primeiro e segundo trimestres de 2022.
Na América do Norte, o Neeva custa 4,95 dólares (cerca de 4,4 euros ao câmbio atual) e dá aos utilizadores um motor de busca sem qualquer publicidade ou hiperligação de afiliados. Segundo a empresa, uma pesquisa feita na versão para smartphones do Google devolve uma página de resultados que está ocupada, em cerca de 40%, por publicidade. Além disso, como a Neeva não monetiza os dados dos utilizadores, permite que as pessoas possam integrar o e-mail e as plataformas de armazenamento diretamente no motor de busca, para que, a partir de um único local, consigam chegar a grande parte da sua vida digital. Demasiado intrusivo? É algo que está desligado de origem, só enrique a experiência pessoal quem quer. Continua intrusivo? Há um modo anónimo, que não associa qualquer pesquisa ou histórico à conta do utilizador.
“Se te preocupares com pesquisas de alta qualidade, se te preocupares com a tua privacidade, como é que os teus dados são usados, se te preocupares com a indexação dos teus dados pessoais, se queres mais controlo sobre como é a tua experiência de pesquisa, nós somos uma resposta para ti”, considera o responsável.
E se pensar bem, que melhor pessoa para construir um motor de busca do que o homem que esteve envolvido na engenharia e no lado comercial do maior motor de busca do mundo? Além disso, quando Sridhar fundou a Neeva, trouxe companhia de peso. O seu cofundador, Vivek Raghunathan, também esteve na Google, na qual foi líder de monetização do YouTube. Outros nomes sonantes da Neeva incluem a executiva Margo Georgiadis, que já foi presidente da Google para as Américas, Bill Coughra, antigo vice-presidente global do Google Search, e Steven Shure, que transformou o Amazon Prime num serviço de escala mundial, é o diretor de negócio da startup.
“Digo às pessoas que a Neeva é tanto uma experiência social quanto é uma experiência de produto e são ambas muito difíceis. Construir um produto que é comparável, em qualidade, à pesquisa do Google é muito difícil. E nunca foi feito desde que a Google apareceu”, explica o CEO. “ Existem pessoas que estão entusiasmadas com a ideia de criar um serviço online icónico. O desafio é parte do que nos faz querer fazê-lo. Construímos a Neeva porque pensamos que existe uma necessidade para isso, uma necessidade de concorrência”.
Não resistimos a provocar Sridhar. “Sabe que está a lutar contra o serviço online mais dominante do mundo, certo?”. “Pensamos que somos complementares à Google, o meu objetivo não é derrubar a Google”, respondeu. E o modelo de negócio transparente – tu pagas um serviço, nós damos esse serviço – pode permitir-lhes ganhar espaço.

Uma das funcionalidades diferenciadoras da Neeva é que os resultados (e não apenas as sugestões) de pesquisa são mostrados ao utilizador, em apenas 200 milissegundos, diretamente na caixa de pesquisa, à medida que escreve. “A Google tem a capacidade técnica para fazê-lo? Absolutamente. Se eles o vão fazer? Nunca, porque mata as receitas vindas dos anúncios, impede-te de ires até à página dos resultados onde estão todos os anúncios. Mas nós podemos lançar isso. Há um número de coisas que podemos fazer que a Google não vai fazer”, defende.
“É menos sobre nós a concorrer pesquisa a pesquisa contra a Google, mas mais sobre quais são as coisas incríveis que podemos fazer quando estamos livres do fardo de ter que mostrar anúncios. Mais personalização, colocar-te mais no controlo, ter resultados mais rápidos, permitir-te indexar dados que nunca sonhaste em colocar no Google, são todas coisas que podemos fazer”.
Um homem contra o mundo
A Neeva começou quase como uma espécie de manta de retalhos de serviços digitais – a pesquisa era garantida pelo Bing e o serviço de mapas pelo Apple Maps. Sridhar Ramaswamy diz que esta era a forma mais rápida de chegar ao mercado, mas garante que a empresa está a desenvolver, dentro de portas, toda a tecnologia de base para aquele que é o serviço principal do Neeva, o motor de busca. Apesar da proposta de maior privacidade e controlo sobre os dados, e a inexistência de publicidade, o foco da startup está em criar um motor de busca de “alta qualidade”.
Mas porquê começar do zero, quase um homem contra o mundo? Não poderia Sridhar ter tentado executar a visão da Neeva, uma motor de busca mais amigo da privacidade dos utilizadores e com menos publicidade, enquanto estava na Google? “É muito difícil, é muito difícil. Eu digo a brincar às pessoas que é como dizer à maior casa de bifes do mundo que devem abrir um anexo vegetariano, não funciona assim”. E se a Google quiser comprar a Neeva? “Não penso que isso vá acontecer e não penso que aceitaríamos. Tenho muita certeza sobre esta parte”, adianta.
A tarefa que tem pela frente é difícil, mas Sridhar sabe que está melhor posicionado do que ninguém para a concretizar. “A Google tem mais de cinco mil pessoas a trabalhar no motor de busca e tem-no há 15 anos, por isso é um problema difícil conseguirmos apanhá-los num ou dois anos com 60 pessoas. Essa é a luta. Mas a maior motivação por trás da Neeva é que a tecnologia, especialmente tecnologias de utilização diária, deve tornar-se mais sobre servir as pessoas em vez de explorá-las”.