A plataforma de acesso aos comboios no Cais do Sodré, em Lisboa, de onde partem transportes em direção a Oeiras e Cascais (a cada 20 minutos, como em todos os outros dias de semana, durante o ano), compara-se bem com a fila da frente de um concerto de uma estrela internacional. Todos esperneiam para chegar mais à frente (à porta do transporte), há melodias e cânticos no ar, gritos, alegria, fotografias, vídeos, abraços. Mas a metáfora desfaz-se a cada comboio que parte, deixando para trás mais de metade dos passageiros, de bilhete na mão e sem acesso.
Não é hora de ponta, são 11h. Mesmo assim, há quem veja o tempo a passar sem conseguir chegar ao trabalho ou cumprir o itinerário das férias. Durante o período da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), a organização delineou planos de mobilidade, cortando acessos de um lado para evitar concentrações incontroláveis, e reforçando, por outro lado, a segurança e os transportes (o que se verifica efetivamente nos autocarros da carris, que chegam a aparecer com intervalos de cinco minutos para fazer percursos que no dia-a-dia se chega a esperar na paragem mais de meia hora). Um esforço evidente para responder às 254 mil pessoas que se inscreveram para o evento com jovens de todo o mundo e com a presença do Papa Francisco.
A VISÃO percorreu as linhas ferroviárias de Azambuja e de Cascais; as estações de metro das linhas verde e azul e entrou em autocarros (cheios e vazios). Pelo caminho, encontrámos lisboetas e turistas que, contagiados pela tolerância defendida pela Igreja Católica, até aceitam juntar-se à festa. Como aconteceu com João, Rodrigo, Diogo e Marta, um grupo de amigos de Odivelas, entre os 15 e os 16 anos, que estão a aproveitar as férias escolares para ir à praia ao Estoril.
“É bom ver a cidade cheia de gente da nossa idade”, nota o primeiro. João gosta de cantar e Rodrigo toca viola, por isso, estes dias até tornam a viagem de comboio mais interessante: podem expressar-se alto e bom som que têm garantidos coro e aplausos. Se não conseguirem entrar no próximo comboio, apanham o seguinte.
Outros não conseguem superar o pensamento de se sentirem “estrangeiros no próprio país”, como descreve Emília Martins, 72 anos. Mora junto à estação do Oriente e trabalha como empregada doméstica de uma família em Algés. Por norma, chega ao trabalho às 8h30. Hoje são 11h23 e ainda está no Cais do Sodré.
Desde que chegou, passaram dois comboios em que não conseguiu entrar e, ao olhar à sua volta, é fácil acreditar que talvez não consiga arranjar um lugar – mesmo que em pé e apertada – no próximo. Vai entrar num táxi e gastar €9,50, quando, sublinha, pagou o passe mensal.
“Parece que se esqueceram de que há pessoas que não podem trabalhar a partir de casa. Isto está a condicionar a nossa vida”, continua Emília Martins que, com esta conversa, reúne mais três portugueses descontentes à sua volta, indiferentes à notoriedade que o evento possa trazer para o País. Todos concordam: o problema não é a JMJ, é a necessidade de reforçar ainda mais os transportes, neste caso, os comboios.
Passear pela capital da juventude
Manuli Santiago e o marido, Jesus Puertas, compraram a viagem para Portugal ainda antes de serem anunciadas as datas da JMJ. Vivem em Madrid e, quando a imprensa espanhola lhes deu notícia do evento, pesaram as duas hipóteses: desmarcar (mas iam perder algum dinheiro) ou manter os planos, ainda que condicionados. Optaram pela segunda, embora, esta manhã, tenham chegado a duvidar da escolha feita, quando estiveram cerca de uma hora à espera de um comboio para Belém (um dos percursos mais usados pelos peregrinos para se dirigirem aos confessionários montados naquela zona da cidade). No final, desperdiçaram duas viagens pagas, não entraram no comboio e decidiram ficar pela Baixa de Lisboa. “Ali é que eu não me vou meter”, aponta Manuli Santiago em direção à multidão.
A viagem deste casal espanhol a Lisboa, por ironia – contam a rir-se –, coincide exatamente com os dias da JMJ. “É difícil, mas temos de ir andando… já me doem muito as pernas, mas os transportes estão fatais. Só posso contar com estes”, diz a turista madrilena, olhando para os seus pés.
Nem a proximidade do Papa anima. “É-me indiferente. Não venho ver o Papa, venho ver Lisboa.” Ou melhor, o que dela conseguir ver.
Pelos principais pontos turísticos de Lisboa torna-se, por estes dias, mais complexo encontrar alguém que não tenha vindo a Portugal pela Jornada. No Cais das Colunas, em frente à praça mais emblemática de Lisboa, a do Comércio, entre as centenas de pessoas em movimento com a identificação da JMJ ao pescoço e a t-shirt oficial vestida, descobrem-se pontualmente algumas famílias alheias ao acontecimento religioso, mas nada incomodadas com a “confusão”. Uma família francesa de quatro contornou a situação da mobilidade com o aluguer de um carro e um casal espanhol, aconselhado por um motorista da Carris na estação de Santa Apolónia, fez-se “à estrada” a pé até ao Marquês de Pombal, uma vez que a Avenida da Liberdade foi cortada ao trânsito. Mas “faz parte, não faz mal nenhum”, dizem.
Uma viagem alegre
9h28. O comboio que partiu de Castanheira do Ribatejo há dez minutos com destino a Lisboa – Santa Apolónia para em Alverca e aqui entra a maior enchente de peregrinos da linha. O volume sobe. Chegam divertidos, a agitar bandeiras, a cantar hinos católicos, e depressa a terceira carruagem se torna o palco de cantares à desgarrada, com sotaques de Alentejo a Viseu.
Imunes à alegria dos participantes da JMJ, dois ou três passageiros em deslocação para o trabalho insistem em manter os phones nos ouvidos e em não querer conversas com um grupo de freiras irlandesas. Ou ainda com um outro de 11 elementos, que propõe vivas ao Papa, onde está incluída Fernanda da Silva, 58 anos, dirigente de uma instituição de acompanhamento temporário de crianças na Covilhã. Vieram do Brasil, Angola, Moçambique e Cabo Verde, estão hospedados em Alverca e dirigem-se a esta hora para o Parque Eduardo VII, onde Francisco só chegará ao final da tarde. Não querem perder a oportunidade de conquistar um bom lugar.
“Pela experiência de ontem, vamos para lá bem cedo” e contam também “com a descoordenação dos transportes, que sentimos no primeiro dia”. “Às páginas tantas, fecharam o metro e nós não sabíamos e havia outra parte do grupo que estava em Belém e que não estava a conseguir transporte.” Tiveram de ir a pé, para o Marquês de Pombal, o que equivale a seis quilómetros e 1h15, segundo o Google Maps). Nada que o entusiasmo de estarem a na JMJ não cure.