“Se não der para avançar, podemos nós todos ser outdoors”, dirá, já no final da entrevista, Telma Tavares, a autora do design dos três cartazes gigantes que vamos ver (ou não…) na semana da Jornada Mundial da Juventude, em pontos estratégicos de Lisboa, Oeiras e Loures.
Os outodoors, em fase de produção, são idênticos à imagem que reproduzimos aqui em cima. De um lado, lê-se, em inglês, “4800+ crianças abusadas pela Igreja Católica em #JMD #WYD”, do outro veem-se os pontos, exatamente 4 815 pontos, que representam todas essas vítimas.
Telma é otimista, mas pragmática. Antecipando a hipótese de eles poderem não chegar a ser colocados, ou permanecerem pouco tempo à vista de todos, decidiu partilhar aqui uma pasta com as imagens em formato A4 e A0 para cartazes, formato para t-shirt ou tote bag e formato para autocolantes.
“Isto é de todos. As pessoas fazem o que quiserem com as imagens. Se a cidade ficar cheia de autocolantes, não fui eu a produzi-los. Acreditamos que está tudo dentro da legalidade”, sublinha a designer, “mas estamos preocupados com a possibilidade de nem sequer conseguirmos colocar os outdoors.”
“Num estado laico, num momento em que muitas pessoas lutam para manter as suas casas, o seu trabalho e a sua dignidade, decide investir-se milhões do dinheiro público para patrocinar a tour da multinacional italiana”, escreve Bordalo II, terminando com um irónico “Habemus Pasta”, numa alusão direta à expressão “Habemus Papa”, utilizada quando se anuncia a eleição de mais um Papa.
“ESTE É O NOSSO MEMORIAL POSSÍVEL”
A iniciativa This Is Our Memorial (este é o nosso memorial) nasceu de maneira orgânica. Desde que saíra o relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais Contra as Crianças que Telma Tavares andava com vontade de avançar com uma forma de protesto. Com mais urgência ainda quando se soube que, afinal, a Igreja não ia construir nenhum memorial de homenagem às vítimas, a tempo da Jornada Mundial da Juventude e da vinda do Papa a Lisboa.
Na quarta-feira, 25, criou, então, o design com a frase e os pontos, e partilhou-o no Twitter, incentivando os seus seguidores a fazerem o que quisessem com ele. Pouco depois, um utilizador sugeriu que se avançasse com uma campanha para angariar fundos para a impressão e a colocação de um outdoor.
Rapidamente se gerou um movimento de pessoas interessadas em juntar-se ao protesto e disponíveis para apoiar em várias áreas. “Isto não sou eu, somos muitos e é apartidário”, frisa a designer. E o mesmo se explica na página de crowdfunding:
A conceção dos cartazes arrancou na quinta-feira, 26, por coincidência na véspera de Bordallo II surpreender tudo e todos ao partilhar no Instagram o momento em que estendeu uma longa passadeira, com notas de 500 euros estampadas, na escadaria do polémico palco-altar da Jornada Mundial da Juventude (como se conta aqui).
“Não temos nenhuma outra associação que não o facto de nos conhecermos via redes sociais e partilharmos da indignação provocada pelo branqueamento dos crimes perpetrados por membros da ICAR em Portugal, nomeadamente através da realização das Jornadas Mundiais da Juventude em Lisboa, sem que até hoje tenha havido um apuramento cabal das responsabilidades da ICAR nos casos de abusos que se conhecem”, lê-se nessa página, onde estão disponíveis links para várias notícias sobre estes abusos sexuais e para o site do relatório da comissão.
A campanha arrancou na quinta-feira e, em apenas três horas, chegou-se aos 950 euros iniciais. Em menos de um dia, as contribuições ultrapassaram os 2 mil euros e ela só foi fechada para os organizadores poderem receber o valor relativo não a um, mas a dois outdoors, e avançar rapidamente com a sua produção.
“Parece que estavam todos à espera que alguém fizesse alguma coisa para poderem participar. Há tanta gente a querer contribuir que vamos em breve fazer a angariação para o terceiro outdoor”, conta Telma.
“Queremos comunicar estes números porque nos parece que a Igreja está a varrê-los para debaixo do tapete”, alerta. “Os outodoors são um memorial, são a nossa homenagem possível às vítimas. E são uma forma de protesto não só pelos abusos que a Igreja tenta minimizar como por todos os gastos financeiros com as jornadas que o Bordallo II tão bem referiu.”
GRAFITIS E REDES SOCIAIS
Há mais ações em curso, no terreno e nas redes sociais. Nas últimas semanas, Lisboa viu aparecerem vários grafiti alusivos à Jornada Mundial da Juventude, à vinda do Papa e aos abusos sexuais de menores no seio da Igreja.
Na Avenida Almirante Reis, numa parede de uma entrada de prédio habitualmente ocupada por sem-abrigos apareceu escrito: “Ainda antes de o Papa vir, já eu rezava por um quarto aqui”. O grafiti foi rapidamente apagado e no seu lugar surgiu outra frase, carregada de ironia: “Os 4 800 abusos sexuais não são tão fáceis de apagar” e uma assinatura – Malamado.
Numa parede num outro ponto da cidade, lemos “Igreja, Estado e capital, associação criminosa”, e no vidro de uma paragem de autocarro, com a hashtag #JMJ para que não restem dúvidas: “4 800 crianças abusadas #JMJ”.
No dia 18 deste mês, surgia a conta no Instagram Boycotting JMJ in Lisbon, com publicações em inglês e em português, com o objetivo de ir “desvendando as hipocrisias da Jornada Mundial da Juventude em Lisboa” e a hashtag #BoycottJMJ.
Contactado por mensagem privada, o seu autor, que prefere não se identificar, apresentou-se como “um cidadão de Lisboa que, frustrado com a usurpação contínua do espaço público das cidades para benefício do turismo, decidiu criar uma conta para divulgar alguns dos principais problemas” com o evento religioso na capital, “desde os exagerados apoios públicos, à péssima resposta da igreja aos casos de abusos sexuais”.
“Numa altura em que tanta gente está a passar mal, não faz sentido um evento que, ainda por cima, assumiu, desde o início, que não era para quem cá mora e trabalha, mas sim para quem vem de fora”, diz. “Acredito que as cidades sejam para as pessoas e das pessoas, não marcas para consumo por turistas.”
“Farto das promessas eternas” de que a JMJ vai trazer muito dinheiro “quando houve tanto dinheiro investido e expulsa as pessoas da cidade para poder acontecer”, salientou que os lucros ficam retidos sempre nas carteiras de meia dúzia e não chegam a quem mais precisa ou é prejudicado pelo turismo. “Basta ver as condições precárias e os salários de quem trabalha nessa área, mesmo em lisboa.”
SEM PAPAS NA LÍNGUA, NO MARTIM MONIZ
Também presente no Instagram, mas com uma presença grande na cidade está o movimento Sem Papas na Língua. Os seus cartazes estão espalhados um pouco por toda a cidade e as suas publicações, com as mesmas mensagens, embora naturalmente mais longas, tiveram início no dia 23.
A primeira publicação do grupo convida todos a estarem presentes numa concentração no dia 4 de agosto, a partir das 19 horas, na Praça Martim Moniz, escassas duas horas antes de começar o primeiro encontro mundial de evangelizadores e missionários digitais.
É aí que vai ser instalado o Parque Criston@utas, onde na noite de sexta-feira terá lugar o Festival de Influenciadores Católicos, organizado pelo projeto The Church Listens to You (em português, “A Igreja Escuta-te”). “Acontecerá logo após a Via Sacra com o Papa (agendada para as 18 horas, no Parque Eduardo VII) e ‘será um momento para celebrar juntos, partilhar testemunhos e experiências, rezar e cantar’”, lê-se no site Sete Margens.
E como isto anda tudo ligado, no centro do “cartaz” da concentração organizada pelo Sem Papas na Língua está o Nenuco que Bordallo II pregou na cruz, na sua instalação Cruzes, Credo, Canhoto, de outubro do ano passado.
À VISÃO, um dos membros do Sem Papas na Língua respondeu, também por mensagem privada, que são um grupo de pessoas e coletivos autónomos, em que as decisões são tomadas em coletivo. “Assim sendo, não temos interesse em expressarmos enquanto singulares”, frisou.
O manifesto para a concentração de sexta-feira, 4, pode ser lido aqui e também nas publicações no Instagram. Resumidamente, defendem: “A Igreja católica sempre apoiou: a escravidão de povos indígenas e o tráfico de seres humanos; a tortura e menosprezo pelas mulheres; o anti-semitismo e o racismo; o espezinhar do pensamento crítico, científico e espírito livre; a manipulação educativa através dos seus preceitos cristãos e duvidosamente morais; a violação de mulheres e menores; a condenação do amor livre em todas as suas expressões de género; o Fascismo e a opressão dos povos.”
Vale a pena ler o manifesto, que termina assim: “Sabemos que todes nós sofremos de uma maneira ou de outra às mãos de um catolicismo podre e bafiento. Mesmo aqueles que por se considerarem crentes, se auto-martirizam, se submetem às hierarquias e se substimam. A igreja tira-nos os meios da nossa própria autonomia. Diz-se amiga dos pobres, mas age historicamente como aliada dos ricos.
Não temos papas na língua e por isso apelamos ao atrevimento, à insubmissão e à insurreição. Desobedecemos porque temos raiva desta hipocrisia e estamos fartas de tanta submissão. Não podemos deixar que estas estruturas continuem a tomar conta das nossas próprias vidas,corpos e espaços.”