Por volta dos meus 15 anos, a minha mãe deu-me um cinto de cabedal, preto, bastante largo e com uma grande fivela de metal amarelo. O cinto, belíssimo, fazia parte da farda do colégio de freiras lisboeta, onde ela tinha estudado até ao antigo 7.º ano dos liceus.
Nesse dia, rimo-nos as duas quando eu me estreliquei para conseguir prendê-lo no último furo e, mais ainda, quando ela contou que usava o cinto assim apertado para fazer com que a saia da farda subisse um pouco acima do joelho.
Lisboa do final dos anos 50 era uma cidade conservadora e atenta aos chamados bons costumes. As irmãs queriam ter adolescentes recatadas nas salas de aula, e uma das regras desse colégio era a proibição de as alunas adaptarem a farda, obrigatória, a seu bel-prazer.
Dali a menos de uma década, Rosarinho e a maioria das suas amigas iriam usar minissaias que pareciam cintos largos. O mundo, capital portuguesa incluída, tinha dado uma grande volta – mesmo que no tal colégio tudo pudesse continuar quase como dantes.
Foi desse episódio que me lembrei esta semana, ao receber um e-mail do diretor de turma da minha filha mais nova, que fará 15 anos em julho. No assunto lia-se “Mensagem da direção” e lá dentro pedia-se aos “caros pais” a “melhor atenção” para a seguinte mensagem da diretora da Escola Secundária Pedro Nunes (ESPN), em Lisboa:
“Caros Encarregados de Educação,
Agradecemos a vossa colaboração no cumprimento do regulamento interno da Escola por parte dos vossos educandos.
Os alunos devem estar na escola com vestuário adequado. Isso implica não trazer roupa de praia, nomeadamente calções de banho, chinelos, calções demasiado curtos e camisolas com excessivo decote.
Inclusivamente, em situação de exame, recomenda-se vestuário adequado sob impedimento de realização do mesmo.
Atenciosamente, Maria do Rosário Andorinha”
‘CALÇÕES ABAIXO DA CINTURA’
Ri-me para dentro e continuei a trabalhar, mas voltámos naturalmente ao assunto ao final da tarde, numa altura em que a polémica já estalara na internet. Notícias, publicações nas redes sociais, muita gente a lembrar que estamos na semana em que se celebram os 50 anos da liberdade conquistada com o 25 de Abril, e a diretora do antigo Liceu Pedro Nunes a desdobrar-se em explicações.
Ao Público, Rosário Andorinha disse que tinha havido chamadas de atenção por causa das roupas usadas pelos alunos. “Ultimamente tem sido excessivo”, adiantou: “Muitas raparigas, muitas alunas, chegam a vir praticamente só com uma espécie de top, só a tapar o peito e calções abaixo da cintura. E isto para estar numa sala de aula não é adequado.”
“Há tops que tapam apenas o peito e pouco mais. As outras pessoas também podem não se sentir cómodas, há outros alunos que se podem sentir incomodados.”
Ao mesmo jornal, Rosário Andorinha pediu “calminha” quando se evoca “a ideia do fascismo”, a propósito desta sua recomendação. E afirmou: “Estamos no 25 de Abril, toda a gente veste o que quer e bem lhe entender, às cores e às flores, mas há um mínimo previsto no regulamento interno.”
Acontece que o Regulamento Interno da ESPN, em vigor até 2025, apenas estabelece que os alunos devem “apresentar-se com vestuário que se revele adequado, em função da idade, à dignidade do espaço e à especificidade das atividades escolares”. Uma redação que, na sua essência, plasma o que ficou estabelecido no Estatuto do Aluno e Ética Escolar, aprovado pela Lei n.º 51/2012, de 5 de setembro – que nessa alínea termina fazendo referência ao “respeito pelas regras estabelecidas na escola”.
Quanto aos exames, não há qualquer referência a vestuário no Guia Geral para os exames nacionais do ensino secundário e acesso ao ensino superior, publicado em fevereiro deste ano.
Rosário Andorinha já veio entretanto a público dizer que nenhum aluno do antigo liceu Pedro Nunes será impedido de realizar exames por causa do vestuário. Mas não conseguiu esvaziar a polémica, que nos levou a querer saber com que linhas se cosem as direções das escolas, públicas e privadas, quando o assunto é o vestuário dos seus alunos.
NO CAMÕES ‘É PROIBIDO PROIBIR?’
De João Jaime Pires, diretor da Escola Secundária de Camões, em Lisboa, ouvi gargalhadas e uma primeira resposta óbvia: “Isso é perguntar à sua filha!” Atento à população escolar, pais incluídos, o professor sabe de cor que a minha filha mais velha frequenta o 11.º ano nesse antigo liceu onde é hoje grande a heterogeneidade dos alunos, nomeadamente quanto ao vestuário que escolhem usar nas aulas.
Nem de propósito, o diretor do Camões acabara de sair de uma palestra dada por Teresa Tito de Morais, no âmbito do programa para assinalar os 50 anos do 25 de Abril. Aos alunos, a fundadora e presidente do Conselho Português para os Refugiados falara sobre os seus tempos de exílio, passado na Suíça, entre 1965 e 1974. João Jaime Pires acabara, por isso, de ser recordado que a liberdade é um dos valores mais importantes e que as mulheres nem sempre tiveram acesso a ela.
“Neste momento, vivemos num mundo perigoso… O Camões só teve raparigas em 1972/73, quando o Veiga Simão [então ministro da Educação Nacional] obrigou o reitor Sérvulo Correia a aceitá-las, porque já não havia lugar no [antigo liceu] Maria Amália [Vaz de Carvalho] – e foram logo 500”, lembra.
“Elas tinham de vir de bata e ficavam na parte norte, escondidas, fora dos olhares dos rapazes. Era o tempo dos três dedos abaixo do joelho”, comenta, numa referência à peça de teatro de Tiago Rodrigues, sobre a censura no teatro, estreada em 2012. “E é evidente que, pouco depois, o 25 de Abril veio mudar tudo.”
Numa das paredes da sala 16 do antigo liceu, que está ainda a ser reabilitado, no âmbito da Parque Escolar, hoje lê-se a frase: “26.04.1974 os nossos colegas estavam diferentes, os nossos professores pareciam outros professores”, de José Alfaro, um dos antigos alunos citados no livro Liceu de Camões – 100 anos, 100 Testemunhos (Quimera, 2009).
Essa recordação faz parte de um projeto da artista plástica Fernanda Fragateiro, que espalhou frases relacionadas com o 25 de Abril pelas salas. Numa outra, os estudantes de 2024 ficam a saber que, dois dias após a revolução dos cravos, “em vez de dar a aula de francês, Mário Dionísio conversou com os alunos”.
O Camões tem um passado ligado ao anti-fascismo que, cinquenta anos após a queda da Ditadura, a direção não quer deixar esquecer. Também por isso, o que agora aconteceu no Pedro Nunes é motivo para refletir, acredita João Jaime Pires.
“Estamos num momento de alguma perplexidade que deve suscitar reflexão”, frisa. “Não quero acreditar que seja preciso regulamentar o que os alunos levam vestido para a escola, muito menos se uma camisola deve ser mais ou menos decotada. É preciso algum bom senso. Vale a pena refletir, se não caminhamos para aquilo que não queremos – que são outra vez os bons costumes.”
O diretor da Escola Secundária de Camões acredita, isso sim, que as escolas “têm a obrigação de conversar com os alunos e com os professores”, para não se chegar “ao extremismo de proibir”. Na sua opinião, na parede de uma das salas de aula podia estar um dos slogans do Maio de 68: “É proibido proibir”.
“Quando aparece um regulamento, é porque perdemos. Não conseguimos dialogar e resolver o problema. É um sinal”, nota. “É isso que penso ao saber das recomendações da direção do Pedro Nunes, ainda por cima muito viradas para as raparigas e com uma grande subjetividade. Onde são as fronteiras?”
Importante, diz, é clarificar o que está em causa, “para não ser pior a emenda que o soneto”, como dizia Sá de Miranda. “E pode-se conversar com os jovens, para que não tenham uma atitude contrária à ética. Entendemo-nos a conversar, é como no caso dos telemóveis”, compara. “Não são aqui proibidos na escola, porque podem ser um instrumento de trabalho, mas cabe também aos alunos serem responsáveis e saberem quando devem ou não usá-los.”
Para João Jaime Pires, basta ir à porta do Pedro Nunes para ver como os estudantes estão todos bem-vestidos. “Se calhar, notamos outras coisas, como não haver pessoas de diferentes etnias”, ironiza. “É importante refletir em tudo o que acontece, mas neste caso o primeiro a desmarcar-se foi o próprio Ministério da Educação [desconhecia a situação].”
‘É UMA NÃO-QUESTÃO NA ANTÓNIO ARROIO’
Para a adjunta do diretor da Escola Artística António Arroio, que teve a sua génese num edifício situado na Rua Almirante Barroso (junto ao então liceu Camões), a potencial ameaça de impedir a realização de um exame, por causa do vestuário, não deixa margem para dúvidas. “Ela excede as competências da escola”, sublinha Benedita Salema.
“Num exame nacional, as escolas não podem criar regras próprias – e, ainda por cima, restritivas. Aí, há um excesso”, explica.
No regulamento interno da António Arroio, à exceção da lei que se aplica a todas as escolas, “não existem recomendações relativamente ao vestuário, nem ao penteado ou à maquilhagem”, enumera. “E nunca houve, entre os professores ou os encarregados de educação, ninguém a considerar que era um problema que devia ser pensado.”
A António Arroio “sempre foi uma escola criativa”, lembra. “Às vezes, as pessoas são criativas na sua forma de se mostrarem ao mundo, e é isso que devemos fomentar. Faz parte da imagem da nossa escola os alunos serem criativos com eles próprios.”
“A maneira como os alunos se vestem é uma não-questão nesta escola. Quem diz alunos, diz professores e diz funcionários. E, se não forem criativos, também não tem mal nenhum.”
‘LIBERDADE RESPONSÁVEL’ NO VALSASSINA
À exceção do equipamento de Educação Física, os alunos do Colégio Valsassina, em Lisboa, cuja origem remonta a 1898, não têm nenhuma regra de vestuário. “Apenas devem apresentar-se com uma imagem cuidada – é isso que está escrito no regulamento interno”, diz o diretor pedagógico, João Gomes.
“Sentimos que deve haver espaço para uma liberdade no seu crescimento. Podem, por isso, vestir-se como entenderem. Se alguma vez houver uma situação que possa justificar uma conversa, conversa-se, mas não temos o hábito de definir regras a priori.”
A postura, no Valsassina é, pois, de liberdade “e no respeito pelo acompanhamento personalizado”, nota o mesmo responsável.
Fazendo um paralelismo com o uso dos telemóveis, João Gomes explica que se entendeu não os proibir no colégio. “Seria mais fácil deixá-los à porta a escola, mas procuramos ter uma postura pedagógica e, até à data, os indicadores têm-nos dado um certo conforto.”
Nesse mesmo sentido, o vestuário é visto como uma postura de “liberdade responsável”, partindo do princípio de que os alunos desenvolvem mecanismos de auto-regulação. “Há liberdade, repito, e há respeito. E, até à data, não sentimos necessidade de fazer uma comunicação mais assertiva.”
Aposto que Rómulo de Carvalho (1906-1997), que estudou e deu aulas no então Liceu Pedro Nunes, iria torcer o nariz ao e-mail da direção de Rosário Andorinha. Porque não é assim que o mundo pula e avança.