Mesmo habitando o mesmo sistema político, já se sabia que Rui Rio (PSD) e Rui Tavares (Livre) habitavam planetas ideológicos diferentes e até bem distantes entre si. O que não se sabia era qual deles considerava o outro mais extraterrestre.
Na verdade, quando chegaram à RTP para debater o conteúdo dos seus programas eleitorais, os dois candidatos já estavam a uma distância física que ia muito para lá das normas da DGS nestes tempos de pandemia: por motivos familiares, o líder social-democrata entrou em direto a partir das instalações do canal público em Gaia, enquanto Rui Tavares falou a partir dos estúdios de Lisboa. Se alguns pensaram que as circunstâncias que impediram um real frente a frente iam adocicar o debate, enganaram-se. É certo que nenhum passou limites nem entrou a pés juntos, digamos assim. Mas ambos mostraram dotes de quem domina os traços da caricatura, sobretudo quando se trata de analisar propostas que impedem qualquer contágio entre o PSD e o Livre. Os dois só podem mesmo colidir.
PROPOSTAS ECONÓMICAS A ANOS-LUZ
Rui Rio trouxe para o debate as contas e os milhões – só faltou o lápis na orelha – com que pretende baixar impostos – IRC, IRS e IVA da restauração – sem deixar de gerar receitas para investir no País. Sem turbulências inesperadas, o crescimento do PIB garantirá, segundo ele, “mais 17 mil e 300 milhões de euros de receita” até 2026. Rio assegura, neste como noutros aspetos, ser diferente do PS, que, para ele, é uma espécie de governo bêbado: aumenta despesa, aumenta impostos “e depois gasta tudo”.
Nesta altura, já Rui Tavares tinha perdido a esperança de que o seu adversário aparecesse na sua versão de 2017, altura em que apresentou ao congresso do PSD uma moção “onde dizia que a maior parte dos investidores não elege a carga fiscal como um dos entraves ao investimento em Portugal, mas antes a burocracia, a instabilidade, as alterações recorrentes ao quadro existente, bem como a morosidade na resolução dos litígios”. Com este, o cabeça-de-lista do Livre por Lisboa tenderia a concordar, assumir. Mas o adversário que tinha pela frente era, afinal, outro. E a anos-luz das propostas do Livre nesta matéria, cujo objetivo é “fazer crescer o perímetro de coleta fiscal do Estado através de uma economia que seja mais especializada, que tenha mais incorporação de conhecimento e tecnologia e seja altamente avançada e inclusiva”.
Rui Rio
“Os funcionários públicos têm de ter aumentos, não vamos pô-los a perder ainda mais poder de compra. Têm que ter um aumento pelo menos ao nível da inflação. Agora, não se pode aumentar a despesa por como o PS faz: aumenta a despesa, ainda aumenta os impostos para ter mais receita e depois gasta tudo.
Rui Tavares
“Rui Rio disse num debate recente que não era crente, mas o programa do PSD acredita em milagres. É possível fazer estas reduções de impostos e prometer algumas destas coisas que o programa promete, mas não diz como executa.”
SALÁRIOS, CARICATURAS E SURREALISMO
Foi na fase de discutir o aumento de salário mínimo, o desemprego e os subsídios do Estado que Rui Rio e Rui Tavares mais se engalfinharam, mas a distância, como já se disse, era bem mais do que higiénica. Com a folga orçamental que estima para os próximos anos se for ele o escolhido para gerir as contas do Estado e a pandemia não minar os seus propósitos, Rui Rio promete aumentar os salários ao sabor do crescimento económico. Este é o planeta racional, segundo ele. Já o que o Livre propõe baseia-se, diz, num “modelo de sociedade completamente diferente”. Segundo as suas contas, o partido do seu adversário neste debate pretende aumentar o salário mínimo dez por cento ao ano, algo “irreal”.
“Os números de Rui Rio estão errados”, contestou, porém, Rui Tavares. “Para chegarmos aos mil euros de salário mínimo, em média anual de 12 meses, precisamos de um aumento de seis por cento, ainda mais baixo do que aconteceu ainda há poucos dias, a 1 de janeiro”.
Por outro lado, Rio considera “absolutamente surrealista” o facto de aquela força política propor um subsídio de desemprego para quem se despeça por livre e espontânea vontade. “Quer dizer: eu tenho emprego, posso estar a trabalhar, mas aborreci-me, quero ficar em casa. E então despeço-me. E aí o Livre diz: se se despede também recebe subsídio de desemprego”, ironizou Rui Rio. “Não faça caricaturas”, reagiu Rui Tavares, dando como exemplo o caso francês, onde existem, diz, “três categorias de exceção à regra geral” que permitem, “em determinadas condições” (litígios judiciais com o patrão ou casos de trabalhadores vítimas de violência doméstica, por exemplo), receber o tal subsídio de desemprego. “Isto é avançar para o futuro, de um Estado Social mais flexível, mais adaptado às necessidades das pessoas, que era aquilo que uma social-democracia do século XXI deveria defender e pelos vistos não defende”, rematou Rui Tavares.
Rui Tavares
“O salário mínimo valia, até há poucos anos, 80 por cento do salário mínimo espanhol. Agora vale 70 por cento. Isto é um risco gravíssimo para a nossa economia porque significa que a mensagem que estamos a enviar ao investidor estrangeiro é que na economia ibérica tão integrada quem quer fazer um investimento numa economia de valor acrescentado e mais qualificado vai para Espanha, em Portugal compete pelos baixos salários”.
Rui Rio
“O Rendimento Básico Incondicional é uma outra prestação que os senhores defendem. É dizer, digamos assim, que os 10 milhões de portugueses têm todos, logo à partida, direito a um subsídio. E depois, em cima disso, é que virão os rendimentos de cada um. Eu acho isto uma coisa absolutamente surrealista”.
A ECO-GERINGONÇA E A DIREITA A TRÊS
E a governabilidade pós-30 de janeiro?
Sem olhar às sondagens, Rui Tavares vê, desde longo, margem para um amplo acordo à esquerda do qual nasça uma espécie de “Eco-Geringonça”, versão menos tóxica (e reciclável?) da dita, presume-se. O Livre propõe-se abrir essa “vereda” através de um pacto social, ecologista e progressista. Se tal não for possível, o plano B está plasmado, segundo ele, na mais recente sondagem da Universidade Católica para a RTP, que permite que a tal “Eco-Geringonça” se faça entre PS, PAN e Livre.
Quanto a Rui Rio, repetiu o que há muito diz: parceiros preferenciais num acordo de governação são o CDS e a IL. “Se esse diálogo não der maioria, entendo que o PS deve estar disponível para negociar e viabilizar a governabilidade. Em sentido contrário, tenho de fazer a mesma coisa. Acima de tudo, está o interesse nacional”, justificou, sem deixar de acusar o Livre e o PS de serem “partidos irmãos”. Mesmo com os estudos de opinião a dar um crescimento substancial do PSD, o líder social-democrata desvaloriza-as. “Nós sabemos o que valem as sondagens. Nas autárquicas, Carlos Moedas tinha 20 por cento e Fernando Medina tinha 40. E acabou por ganhar quem tinha 20”. Embora reconheça que “quem está no cargo há uns anos leva sempre vantagem sobre quem ainda não está”, Rio promete contrariar, nas semanas que faltam, o favoritismo socialista.
Já para Rui Tavares continua a existir o risco de o PSD, ganhando, se preparar para acolher o Chega num acordo para governar. “Um voto no PSD é um voto que nos leva a uma encruzilhada. Nós não sabemos com quem, nem de que forma, é que o PSD pretende governar. Se tiver de governar encostado à extrema-direita, mesmo que seja só com o apoio tácito, vai dar o que deu nos Açores. Se governar com a IL, boa parte da social-democracia vai pela janela”.
Com planetas tão distantes, foi fácil a ambos manter em ordem o seu universo.
Rui Rio
“No seu programa, o Livre quer descriminalizar a ofensa à honra do Presidente da República. Para o Livre pode-se insultar o Presidente da República de qualquer maneira…Se isto já é, de certa forma, uma bandalheira, mais bandalheira fica”.
“O PS e o Livre são, de certa forma partidos irmãos. Viu-se o debate entre António Costa e Rui Tavares e aquilo foi uma conversa de amigos, o que só mostra que o PS está cada vez mais encostado à esquerda e por isso é que se dá bem com o Livre”.
Rui Tavares
“O único entendimento que vimos entre Rui Rio e o PS foi para diminuir os debates parlamentares, foi para diminuir o grau de escrutínio sobre a governação”. “Rui Rio queria rever a Constituição em 2010, em 2018 e em 2019. Em 2022, é por causa do clima. Quando faz chuva quer rever a Constituição, quando faz sol quer rever a Constituição”.