Se não fosse aquela derrota com Marrocos, talvez nunca tivéssemos ouvido falar do caso Saltillo – pelo menos na dimensão mediática que ganhou. Dois anos antes, em 1984, no Europeu de França, as divergências entre os jogadores da Seleção Nacional e a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) já eram profundas, mas os bons resultados da equipa, que só caiu nas meias-finais, após prolongamento, frente à seleção anfitriã, abafaram o mau ambiente e protelaram a contagem da bomba-relógio para o Mundial do México, em 1986.
Se não fosse aquela derrota com Marrocos, talvez o que aconteceu em Saltillo tivesse ficado em Saltillo. Mas o encontro explosivo entre dirigentes e jogadores no autocarro, após a eliminação precoce, quando já não havia automóveis da FIFA para transportar os primeiros, gerou uma confrontação direta que esteve na origem dos castigos aplicados aos segundos. Oito foram proibidos de representar a Seleção e os restantes, com exceção de Álvaro Magalhães, mostraram-se indisponíveis para a equipa das quinas, em solidariedade para com os colegas punidos. A paz só seria restabelecida anos mais tarde, mas muitos não voltariam a representar o País, como Diamantino (26 anos à época) ou Jaime Pacheco (27). Ao longo de todo o apuramento (falhado) para o Campeonato da Europa de 1988, Portugal apresentar-se-ia com uma equipa de segunda linha.
Se não fosse aquela derrota com Marrocos, talvez o que se passou em Saltillo nunca tivesse sido debatido na Assembleia da República – e tivesse ficado apenas pela reprimenda do então Presidente da República, Mário Soares, num célebre telegrama a lembrar aos jogadores que estavam no México em representação do País. O campo de treinos inclinado, os jogos de preparação contra amadores (incluindo cozinheiros e outros funcionários da hotelaria), as festas com mexicanas no Motel La Torre (onde a Seleção estava instalada), a ameaça de greve dos jogadores para reivindicaram o seu quinhão da publicidade que faziam aos patrocinadores da FPF, o protesto de treinarem com as camisolas do avesso para esconderem os tais patrocinadores, todo este folclore podia muito bem não se ter transformado no maior escândalo de sempre da Seleção Nacional, se aquela derrota com Marrocos não tivesse acontecido.
Bastava o empate para Portugal seguir para os oitavos-de-final, depois de um triunfo contra a favorita Inglaterra (golo solitário de Carlos Manuel) e uma derrota perante a Polónia (0-1), nas duas primeiras jornadas da fase de grupos. O mesmo resultado também qualificava Marrocos, mas a sobranceria nacional, frente a um adversário sem estatuto e considerado acessível, redundou numa derrota por 3-1. Sem espinhas. Ao intervalo, o marcador assinalava 2-0 para os marroquinos, que já tinham ampliado a vantagem quando Diamantino fixou o resultado final.
Nesse dia 11 de junho de 1986, Portugal alinhou com Vítor Damas na baliza (Manuel Bento tinha partido o perónio antes do duelo com a Polónia e nunca mais jogou pela seleção), Inácio, Frederico, Oliveira e Álvaro Magalhães na defesa, Jaime Magalhães, Sousa, Jaime Pacheco e Carlos Manuel no meio-campo, e Paulo Futre e Fernando Gomes foram os avançados. Na segunda parte, o selecionador José Torres lançou Rui Águas e Diamantino nos lugares de Álvaro e Sousa.
Dois anos antes, quando Portugal atingiu as meias-finais do Euro 1984, os jogadores do Benfica e do FC Porto ainda faziam as refeições em mesas separadas, tal era o nível de crispação e rivalidade. No México 86, porém, o grupo surgiu unido em torno do capitão Manuel Bento, a falar a uma só voz, mas os resultados não apareceram e ninguém foi capaz de parar a contagem decrescente da bomba-relógio. Entre uma fase final e a outra, realizaram-se inúmeras reuniões entre os jogadores e os responsáveis federativos, mas nunca houve um entendimento para serenar os ânimos.
Dos jogadores convocados por Fernando Santos para o Mundial do Qatar, apenas Pepe e Ronaldo eram nascidos há 36 anos. Nenhum se lembra desta história infeliz. Mas há toda uma geração de antecessores que nunca esquecerá aquele jogo contra Marrocos. Para o bem ou para o mal, o embate desta tarde, no Estádio Al Thumama (15h, com transmissão na SIC e na SportTV1), também será inesquecível para a atual geração de selecionados: é a diferença entre chegar, pela terceira vez na história da Seleção, à meia-final de um Campeonato do Mundo, e ser outra vez atirado para fora, quase quatro décadas depois, pelo outsider Marrocos.