Era evidente que o dia acordara sonolento, contrariado pela obrigação do seu dever. Decidira vingar-se com chuva, através do manto de nuvens que castigava o céu na Invicta, conferindo-lhe uma tonalidade mórbida e cinzenta. Sem liberdade e licença para se revelar, o sol mantinha-se encoberto e a precipitação, ainda que ténue, era suficiente para oferecer incómodos chuviscos. O vento ia-se manifestando, particularmente sereno, dando um ar da sua graça sem, contudo, agravar as condições meteorológicas. Desprevenido, e apenas protegido pelo casaco, confesso que foi com agrado que cheguei a São Bento, pouco antes do meio-dia.
A estação tornara-se especialmente convidativa devido ao clima, e depressa me dirigi ao hall de entrada. Aqui multidões perscrutam diariamente o horário das viagens, ritual que eu próprio antecipo ao da validação do bilhete pelo que, confirmada a linha que me haviam destinado, justificava-se a entrada no respetivo comboio. A pretensão, porém, foi-me barrada pela informação de que os transportes não estavam em funcionamento. A partir daqui, o que até então havia decorrido conforme a naturalidade assumiu contornos arbitrários, tornando a sequência de eventos um total imprevisto. Julgar que a indústria ferroviária consegue manter um fluxo de circulação permanente e confiável é, no presente, uma ilusão semelhante à da criança de cinco anos que conserva a crença no Pai Natal. Atendendo aos meus vinte anos de idade, é lamentável que continue a brincar aos comboios, folia que, como é do saber popular, atinge a plenitude por volta dos dezassete. No meio de divagações como esta, tomei conhecimento de que o atraso nas linhas perduraria por mais uma hora. “Logo hoje que não trouxe o tamagotchi…” Resignado com a incidência, e dispondo de poucas alternativas para ocupar esse tempo, rumei ao comboio que afinal me convinha. Ou assim o pensava, mais uma vez inocente.
Dado o longo período de espera que ainda havia pela frente, não estranhei ao avistar as carruagens desertas, com exceção de duas figuras discretas em cada uma das extremidades. O silêncio pesado, combinado com a luz fraca proveniente do teto, não conferia de todo o ambiente acostumável. Envolto pela ingenuidade, sentei-me tranquilamente a um canto e retirei o exemplar da Visão com que me faço acompanhar neste género de travessias. Aos poucos, o tempo ia passando sem que a afluência registasse qualquer alteração. Assim, foi apenas a dez minutos do limite de embarque que compreendi o óbvio. Estava no comboio errado. De facto, era na mesma linha, mas mais à frente, que o transporte que procurava desde o meio-dia se encontrava estacionado. “Agora é de vez.”
O contraste neste comboio não poderia ser mais notório. A abarrotar pelas costuras, tornara-se uma autêntica mixórdia de gente, que refletia a circulação disfuncional do dia. “Onde tu andavas e onde tu andas, rapazinho…” Felizmente não tardou a que se procedesse a viagem que, em Campanhã, virou pesadelo. Quando parecia que a “lata” não albergava mais sardinha, eis que nova torrente logrou a entrada pelas múltiplas carruagens. Todavia, foi em Vila Nova de Gaia que a qualidade do “peixe” veio ao de cima. Depois de se abrirem as portas, uma senhora de meia-idade subiu num ápice para a plataforma, vociferando um “toca a chegar para lá” que produziu resultados, apesar dos olhares inquisidores de que foi alvo. Não demorou dois minutos a retorquir em boa voz que lhe estavam a apertar, e passo a citar, “as mamocas”. Extrovertida, manteve o tom dando seguimento ao diálogo que trazia do exterior com as amigas. “E precisas de ir a Ovar para comer salchicha?” A esta altura já conseguira captar as atenções em redor, despertando sorrisos irónicos e tímidos com o que proferia, sem haver ninguém com a decência de lhe recomendar antes o pão de ló, ou sequer lhe corrigir a gramática. As estações e apeadeiros desfilavam à medida que a mulher aprofundava a temática da “salchicha”, que não tardou a perder o interesse.
O meu destino aproximara-se, e a paragem em Esmoriz permitiu que pudesse dissipar daquele amontoado humano. Uma viagem que, certamente, não irei recordar. Abstenho-me de compreender a longa cruzada que os funcionários da REFER têm combatido, ano após ano, ao interromperem o normal funcionamento de um serviço público do qual depende a vida de muitas pessoas, teimando nesta conduta que, até ao momento, não os levou a lado nenhum. Nem a eles, nem a ninguém, ora aí está. Que estão no seu direito, enquanto trabalhadores, também é uma verdade que convém ser dita e, assim, estabelece-se facilmente um debate aceso, por força da influência que inconvenientes como este têm na sociedade. Foi então às duas horas que, depois de abrir a porta com a chave, soltei um suspiro de alívio por, enfim, estar em casa. Para trás, ficara novo episódio da greve no setor ferroviário.
Ricardo Marques
“Rabanadas de Escrita”
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