Perder esta oportunidade é desperdiçar uma lição sobre o mundo. Jeff Wall – Time Stands Still. Fotografias, 1980-2023 é uma das mais vastas exposições realizadas até hoje sobre o trabalho de um nome “incontornável”, ou seja, fascinante e seminal, no panorama das artes visuais das últimas décadas.
São mais de 60 obras de um artista que, recorda o curador Sergio Mah (diretor-adjunto do MAAT), produziu “apenas” 200 obras, ao ritmo de uma ou duas por ano. Uma mostra em que as imagens falam do objeto, mas também da história da arte, dos artistas que influenciaram Wall, e que o próprio dissecou numa produção ensaística regular. Não é por acaso que o volume Jeff Wall, Escritos de Arte (Orfeu Negro, 334 págs.), agora lançado com 13 ensaios, compreendidos entre 1982 e 2010, e selecionados por Mah, é um grande compagnon de route para visitar o MAAT.
Deste poderoso universo visual do artista nascido em 1946, em Vancouver, Canadá, emanam cenas da vida quotidiana que potenciam enigmas, e panorâmicas das tensões e tragédias sociais contemporâneas que não precisam de legendas homéricas. É uma visão melancólica, ou enigmática, ou perturbadora, ou evocativa –, mas sempre distante de lógicas prontas-a-consumir.
A solidão, a pobreza, a alienação, a violência urbana, o abandono, a exclusão social? Sim, estão lá. Mas a sua obra não é da ordem do documental, nem o artista se esgota no gesto de carregar no obturador da câmara. Uma fotografia de Jeff Wall pode ser um acontecimento quotidiano fotografado em locais reais ou situações imaginárias construídas em estúdio. Ou, ainda, uma cena ou um cenário “testemunhados, imaginados ou inspirados” na pintura ou na literatura.

Observem-se as duas caixas de luz de grande escala arrumadas no piso inferior do amplo hall do MAAT, exibindo cenas verdejantes e personagens em poses algo familiares. Em Drain (1989), duas meninas sob a ponte de pedra ancestral são apanhadas num movimento coreografado, um corpo que corre, uma saia que flutua, como os que se encontram na história da arte; em Tattoos and Shadows (2000), três figuras sentadas na relva fazem pensar no quadro Le Déjeuner sur l’Herbe de Monet.
Conta Sérgio Mah à VISÃO: “O artista estabelece relações muito evidentes com certos períodos da pintura do século XIX: Monet, Cézanne, Matisse… Mas Jeff Wall não tenta que a fotografia pareça pintura. Há um modelo de imagem no Ocidente, que vem desde o Renascimento italiano, que instituiu a forma como produzimos e olhamos para as imagens. E a ideia de quadro, tal como a do romance na literatura, é uma genealogia que se mantém ativa, ainda que ele entenda que esse modelo teve uma continuação profícua através da fotografia e de como ele a entende.”
Luz e sombras
As imagens wallianas são previamente pensadas, planeadas e depois executadas – à maneira de um pintor ou de um realizador de cinema. O próprio artista arruma-se assim: “A poética ou a ‘produtividade’ do meu trabalho tem-se centrado na encenação e na composição pictórica – aquilo a que chamo ‘cinematografia’. É isso, espero eu, que torna evidente que o tema foi subjetivizado, que foi retratado, reconfigurado de acordo com os meus sentimentos e literacia.”

Sergio Mah sintetiza esta pulsão, liberta de estilo ou coerência: “Cada imagem é um microcosmos que está em construção.” E que organiza o olhar do observador – contando, igualmente, com a sua imaginação. Perante Listener (2015), impressionante imagem de um rapaz loiro, quase diáfano, ajoelhado no chão e de tronco nu, rodeado por seis homens em pose ameaçadora, o observador é sugado para dentro da cena, ao nível de quem está no chão; face à familiar After “Invisible Man” by Ralph Ellison, the Prologue (1990-2000), caixa de luz inspirada no romance de Ellison, representando um homem afro-americano sob um teto repleto de puxadas ilegais de lâmpadas, quem vê transfigura-se num voyeur daquela cave; em Flooded Grave (1998-2000), que exibe uma cova aberta alagada com espécies marinhas, o olhar procura explicações na paisagem do cemitério; face ao impressionante tríptico Actor in Two Roles (2020), com jardins invadidos por duplos, o curador sublinha o conceito da imagem como um ponto de partida.

Roda-se uma curva do MAAT e deparamo-nos com retratos lidos à luz da atualidade: The Giant (1992) representa a colossal figura de uma idosa nua, invisível aos que sobem na escadaria; Mask Maker (2015) mostra um rapaz de hoodie cor-de-rosa e calças esfiapadas, máscara no rosto. Conta Sérgio Mah que, aqui, a observação empírica também desempenhou um papel. Perto do lugar onde Jeff Wall trabalha, as ruas de Vancouver revelam a crise dos sem-abrigo e dos toxicodependentes por culpa do famigerado fentanil…
A grande beleza
Se o artista confirma a tese de quem lhe diz que a sua obra não configura uma visão otimista do mundo, antes preferindo as figuras trágicas da sociedade fragmentada pelo capitalismo – e que se integra numa genealogia de “dramatização” da representação da imagem ocidental que Sérgio Mah traça desde os gregos –, Jeff Wall também entende, refere o curador, que “as imagens devem ser ambíguas, incompletas, paradoxais”. As fotografias são belas, mas, avisa, esta é “uma beleza aporética, problemática, que promove uma sensação de harmonia dentro da imagem para chamar a atenção do espectador”.

Jeff Wall começou a trabalhar com impressões em papel a partir de 1978. Mas as caixas retroiluminadas, 27 ao todo nesta exposição do MAAT, acentuam o fascínio cinematográfico e narrativo da obra. Jeff Wall adotou este método em 1978, depois de contemplar as pinturas de grandes mestres, como Vélazquez e Ticiano. “Usou um dispositivo que se tornara uma espécie de imagem de marca da sociedade capitalista”, lembra Mah. Um ecrã-anúncio de publicidade iluminado na rua, que lhe suscitou o que viria a ser a sua imagem de marca: as composições semelhantes a pinturas de óleo exibidas num suporte contemporâneo.
E por isso há um sobressalto de surpresa ao contemplar-se Recovery (2017-2018) no MAAT: grande pintura amarela com uma montagem fotográfica, que traduz uma experiência de perda de consciência vivida por um amigo. Por lá, descobrem-se referências familiares: a Matisse, Gauguin, Manet, ou a capas de groove rock dos anos 1960. Mas Jeff Wall diz que a pintura não é sua – pintou apenas o que outro imaginou.
Jeff Wall -Time Stands Still. Fotografias, 1980-2023 > MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia > Av. Brasília, Lisboa > T. 21 002 81 30 > até 1 set, qua-seg 10h-19h > €11