Da mesma forma que a Netflix se especializou em produzir séries como se fossem filmes (em termos de qualidade cinematográfica), passou a produzir filmes como se fossem séries (em termos de estilo narrativo). Parece um passo lógico. E, ironicamente, o elogio que se pode dar a este Mudbound é que tem toda essa qualidade televisiva, como se de uma série se tratasse. O filme é da autoria de Dee Rees, uma realizadora negra, que se tem destacado precisamente em produtos para televisão. E conta uma história comovente e forte, passada na América profunda e profundamente racista, no Mississípi, em plena Segunda Guerra Mundial.
O mais fascinante em Mudbound é mesmo a forma como a história é contada. O uso de múltiplos narradores significa um constante convite à mudança de perspetiva, à entrada no olhar do outro, o que faz com que o filme não tenha propriamente uma personagem principal, mas meia dúzia com o mesmo grau de protagonismo. Rees não arrisca, contudo, levar esse seu dispositivo a um extremo mais interessante. Por uma questão empática, não chega a entrar no olhar das figuras mais monstruosas, sobretudo o “pai”, personagem hedionda e racista que não é digna de se autorretratar.
Sendo um filme de época, marcado por hábitos e costumes, aborda essencialmente a questão racial, que fustigou (fustiga?) os EUA muito para além do final da Guerra Civil e do fim da escravatura, através de mentalidades retrógradas e grupos terroristas organizados (Ku Klux Klan). De forma pesadamente irónica, aqui se recorda Ronsel, sargento negro que é um herói da luta contra Hitler na Europa e regressa a uma América onde é tratado como cidadão de segunda, sem plenos direitos.
O filme, construído suavemente, sempre com grande sensibilidade, caminha para um clímax poderoso. Em boa parte, mérito do argumento de Virgil Williams e Dee Rees, a partir do livro de Hillary Jordon.
Mudbound > de Dee Rees, com Garrett Hedlund, Carey Mulligan, Jason Clarke > 134 minutos