A roupa é das poucas coisas que nos acompanham ao longo da vida. Tirando aquelas horas em que nos banhamos, em que dormimos sem a dita ou os dias em que alguns as dispensam – numa praia naturista, por exemplo – a roupa é omnipresente no nosso dia-a-dia, no nosso corpo, na nossa vida em sociedade. E ninguém a dispensa, nem os mais humildes: há os “sem-abrigo”, há os “sem-terra” mas nunca ouvi falar nem li um texto sobre os “sem-roupa”.
Por mais anódina que seja, a roupa carrega consigo, sempre, uma mensagem. Seja o seu núcleo duro – a roupa propriamente dita, digamos, uma camisa ou uma saia – ou os seus acessórios – a gravata, o lenço à volta do pescoço –, a roupa não é neutra.
Uma das características das sociedades livres é que a roupa é adotada por cada um segundo o seu gosto. Seja um punk dos anos 80, numa rua de Londres, ou um betinho de Beverly Hills, a roupa é uma extensão da individualidade, uma marca da personalidade e da singularidade de quem a enverga. Claro que pode ser uma marca de grupo – as gabardinas pretas identificavam os góticos e desalinhados da minha adolescência – mas a adesão a esse estilo continua a ser uma escolha individual.
Há um costume do mundo empresarial ocidental que demonstra bem a importância que tem a roupa como marca de individualidade. No setor financeiro, nos escritórios de advogados, nas administrações de empresas, sobretudo no mundo anglo-saxónico, instituíram-se as casual Fridays, um dia da semana de trabalho em que os funcionários são livres de abandonar o dress code convencional e de se vestirem como entenderem. À sexta-feira, os robôs dos escritórios podem finalmente aquilo que são – homens e mulheres singulares.
Nos regimes ou locais onde reina a autoridade e a individualidade é considerada perigosa, pelo contrário, a escolha da roupa é banida. Na China de Mao o casaco com quatro bolsos estampados e quatro botões passou a ser a norma entre a população masculina e só com a abertura dos anos 90 deixou de ser envergado, como norma, pelos trabalhadores do Estado e pelos altos dirigentes comunistas. O mesmo se passou no Cambodja de Pol Pot, onde o fato preto era obrigatório. E da Coreia do Norte de Kim Jong Un foram banidos os piercings, as tatuagens, os jeans e há um catálogo para escolher os cortes de cabelo permitidos à população masculina. Nos estados islâmicos, as mulheres têm de vestir roupas de acordo com a norma muçulmana, incorrendo em castigos vários se o não fizerem.
Há outros exemplos, no microcosmo do ensino religioso e das forças armadas ocidentais. Um soldado pode ser castigado por não ter a sua farda conforme às regras ou um estudante de uma escola católica afastado das aulas por não trazer o uniforme. Nestes caso, contudo, podemos objetar – pelo menos em Portugal, onde o serviço militar deixou de ser obrigatório há mais de uma década – que a regra do uso de certas roupas depende, em última instância, de uma escolha dos indivíduos, que só frequentam aquela escola ou se tornam militares se quiserem.
O que dizer então de uma democracia madura que envereda por uma histeria contra uma peça de roupa? A dita é de gosto duvidoso – um fato de banho que cobre a quase totalidade do corpo das mulheres que o envergam, regra geral preto, por vezes acompanhado por um lenço sobre a cabeça – mas isso é lá com quem a usa. Mandar polícias armados patrulhar os areais da Côte d’Azur à procura de mulheres com burkinis, que “não respeitam a moral e o secularismo”, é um contrassenso no país que se reivindica da Liberdade, Igualdade e da Fraternidade.
Onde acaba um burkini e começa um fato-de-banho? Vão os polícias passar a andar acompanhados por especialistas em roupa usada em zonas balneares para detetar as prevaricadoras? Parece algo possível em Riade ou em Pyongyang, onde há milícias que controlam os “bons costumes”, mas inadmissível na Riviera Francesa. Será o mesmo imposto a quem se banha com um crucifixo ao pescoço? Ou a quem repousa o corpo na toalha vestindo uma t-shirt com a imagem de Cristo? Vai a França fazer no seu território, por razões diferentes, é certo, aquilo que a sua população critica aos muçulmanos nos seus?
A França é orgulhosa do secularismo, que empurrou para a esfera privada as manifestações de fé e de crença. E a França foi massacrada pelo terrorismo islâmico radical. Mas a França recusou sempre abrir mão dos seus valores democráticos, apesar das ameaças constantes à segurança dos seus cidadãos. Enterrar a liberdade de cada um(a) usar o que entender nos areais de Nice é certamente uma primeira capitulação – esperemos que passageira e única.