Encerra-se o ano. Dos acontecimentos que o marcam destaca-se a morte, precoce e inesperada, de Joana Marques Vidal. Ao silêncio da estupefação, à pancada do absurdo, ao sofrimento pela perda irreparável, sucede o tempo da memória, desde logo, uma memória imaginada nas crianças por quem sempre se bateu, por cujos direitos lutou onde quer que estivesse, qualquer que fosse a função que exercesse, deixando para quem fica o profundo conhecimento que construiu e o exemplo da sua prática constante.
Na defesa dos direitos humanos, no apoio às vítimas de crimes, no movimento associativo, em funções institucionais, na magistratura do Ministério Público, na formação de magistrados, na Universidade, ou ainda, mais tarde, na cooperação com países de língua oficial portuguesa, Joana Marques Vidal, sem jamais deixar de usar a palavra, fosse por sua iniciativa ou quando tal lhe era reclamado, privilegiou sempre a ação. Era pelos resultados que se batia e respondia.
Talvez também por isso o seu retrato como Procuradora-Geral da República venha a ser, de todos, o mais marcante.
Foi aí que, aos olhos do público, Joana Marques Vidal se apresentou inteira, sendo dessa inteireza que cumpre deixar testemunho. Com uma perfeita consciência da dimensão institucional do cargo, nunca permitiu que esta lhe coartasse a naturalidade, a simplicidade própria da sua forma de ser moldada no respeito pelo outro, pela função que exercia e pelo cidadão em geral, a quem sabia ter o dever de prestar contas. Foram essas algumas das virtudes que a acompanharam no exercício de um cargo de enorme exigência e responsabilidade, onde, curiosamente, lutando, como outros, com a sempre eterna falta de meios, nunca se lhe ouvia tal queixa ou justificação.
Muito competente, Joana era uma mulher de convicções, excecionalmente inteligente e culta, apaixonada pelo debate e pelos méritos da discussão criativa e modificadora, de uma alegria contagiante, cheia de ideal, comprometida com os valores que a determinavam a agir, de uma constante irrequietude cívica, permanentemente disponível.
Encerra-se agora o ano. Dos acontecimentos que o marcam, destaca-se a sua morte, precoce e inesperada.
E fica a pergunta: o que seria ela, hoje, se tivesse continuado entre nós?
*Álvaro Laborinho Lúcio
Ministro da Justiça (1990-1995), juiz-conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça (jubilado), ministro da República para a Região Autónoma dos Açores (na Presidência de Jorge Sampaio), diretor do CEJ (1980-1990), é agora escritor, com cinco romances publicados.