Vinte e seis anos depois de um dos reatores de Chernobyl ter explodido e causado mais de 4 mil mortes diretas e indiretas, a planta nuclear voltou, este ano, a chamar a atenção do mundo para os perigos da radioatividade. A invasão russa colocou em perigo o funcionamento do local e trouxe de volta memórias do acidente passado. Mas se existem risco associados, porque continua a planta, ainda hoje, a ter mais de 2 mil trabalhadores e porque só interrompeu atividade 14 anos depois da explosão?
Quando há mais de duas décadas uma das turbinas da planta nuclear de Chernobyl explodiu, o mundo pôde, mais uma vez, ver os efeitos nocivos da radioatividade não apenas no ambiente, mas no ser humano, tanto a curto como a longo prazo. O acidente ocorreu a 26 de abril de 1986 e “foi o produto de uma falha num projeto de um reator soviético, juntamente com erros graves cometidos pelos operadores da central elétrica. Foi uma consequência direta do isolamento da Guerra Fria e da resultante falta da qualquer cultura de segurança”, explica a Associação Nuclear Mundial.
O acidente levou à explosão do reator 4 de Chernobyl, um dos quatro existentes, e apesar de ter causado, segundo estimativas da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) e da Organização Mundial da Saúde (OMS), a morte de mais de 4 mil pessoas, duas delas diretamente da explosão, 28 da síndrome de radiação aguda e as restantes de outras complicações que se foram fazendo sentir meses e anos mais tarde, apenas 5 % do núcleo do reator radioativo foi libertado para o meio ambiente. Estes números reforçam o perigo de uma explosão nuclear não só para a vida humana, mas para toda a vida na Terra.
As consequências do acidente foram diversas e sentidas em todas as faixas etárias. Um aumento significativo de cancro na tiroide foi registado nos anos que se seguiram com especial incidência nas crianças. Outras causas foram, entretanto, identificadas enquanto estudos sobre os impactos da radioatividade iam sendo realizados e outros problemas médicos ia também sendo retirados da lista de possíveis consequências do acidente de Chernobyl. Mais de 350 mil pessoas foram deslocadas das suas casas após o acidente.
O material radioativo libertado depositou-se não apenas na Ucrânia, onde se encontra a central, mas também em países como a Bielorrússia, a Rússia e alguns outros locais da Europa estando, ainda hoje, presente no solo que rodeia Chernobyl no formato de “poeira e detritos” e deixando as regiões que rodeiam Pripyat, a cidade que abriga a central elétrica, e as zonas a cerca de cem quilómetros de Kiev, cidade próxima de Chernobyl, inabitáveis. Estes locais mereceram, por isto, a designação de zona de exclusão por definirem os limites das regiões que não estão aptas para habitação devido aos elevados níveis de radiação, prejudiciais ao ser humano, que apresentam.
“O desastre de Chernobyl foi um evento único e o único acidente na história da energia nuclear comercial onde ocorreram fatalidades relacionadas à radiação”, realça a associação. ainda assim, e apesar dos muitos efeitos que teve a nível de capital humano, a central elétrica continuou a funcionar e a produzir energia durante mais 14 anos.
As principais medidas tomadas após o acidente contaram com interrupção da construção de dois outros reatores que estavam, na época do acidente, a ser instalados na central e a construção de uma estrutura de aço sobre o reator 4 que procurava conter a dissipação de material radioativo. Foi também estabelecida a zona de exclusão para evitar mortes ou problemas de saúde ligados aos elevados níveis de radiação. A central, no entanto, manteve-se operacional e os três reatores que não foram afetados pelo acidente mantiveram-se ativos durante mais de uma década.
O acidente, em si, já foi bastante documentado, desde livros a relatórios e séries, mas o que se seguiu nem sempre é abordado e pouco se fala do pós acidente. Hoje, e depois da invasão russa à central ter colocado novamente os holofotes sobre a mesma, levanta-se a questão: porque foram precisos 14 anos para interromper a atividade em Chernobyl e porque continua a central, ainda hoje, conectada à rede elétrica e com mais de 2 mil trabalhadores? E, acima de tudo: o que nos reserva o futuro?
O pouco falado pós acidente
Nos cerca de 14 anos que se seguiram ao incidente, a central nuclear de Chernobyl manteve a sua atividade utilizando os três reatores (1, 2 e 3) que haviam sobrevivido à explosão, inicialmente sob as ordens da União Soviética e, mais tarde, da Ucrânia. A central permitiu garantir o abastecimento de eletricidade da região, uma das principais razões para não ter fechado depois do acidente.
Após a explosão do reator 4, muitos países demonstraram publicamente o seu receio de que um novo acidente semelhante ocorresse na central, nomeadamente porque a explosão de 1986 resultou, em parte, de uma falha de material, pelo que os reatores ainda ativos, tendo uma mesma origem, poderiam sofrer do mesmo problema. Embora mais de 400 milhões de dólares tenham sido gastos na melhoria e na segurança dos reatores, em 1991 os receios partilhados foram materializados quando o reator 2 incendiou, pondo um fim às suas atividades. Mais tarde, em 1996, também o reator 1 cessou operações depois de um acordo entre a Ucrânia e a União Europeia (EU) ter sido assinado.
Eventualmente, manteve-se apenas ativo o reator 3 por existir uma procura de energia difícil de assegurar caso o mesmo parasse. “A escassez de energia exigiu a continuidade da operação de uma delas (unidade 3) até dezembro de 2000”, explica a Associação Nuclear Mundial, acrescentando que, na época, existia ainda uma considerável dívida da Ucrânia à Rússia, pelo que “a continuidade da operação de usinas nucleares”, que forneciam “metade da eletricidade total” era ainda mais importante “do que em 1986”. A contínua pressão da UE para que fossem interrompidas definitivamente todas as operações na central de Chernobyl acabaram por, eventualmente, levar a que também o reator 3 cessasse atividades. O acordo foi feito com os países do G7 sendo que, em troca de desligar o reator 3, a Ucrânia receberia cerca de 1500 milhões de euros em ajudas.
Durante os seus anos de atividade, Chernobyl mantinha-se um local de risco, mas nem por isso deixou de receber diariamente milhares de trabalhadores. “Embora a radiação fosse alta para os padrões de trabalho atuais, permitia o trabalho normal dos operadores sem que isso fosse fatal para os mesmos”, explica à BBC o engenheiro nuclear argentino Aníbal Blanco, investigador da Comissão Nacional de Energia Atómica (CNEA) e especialista no acidente de Chernobyl. Blanco realça, no entanto, que “de acordo com as normas internacionais vigentes sobre a proteção radiológica dos trabalhadores da área nuclear, hoje o trabalho não seria permitido nessas condições”.
A história da central de Chernobyl não ficou por aqui e o risco de acidentes continuou a existir mesmo depois de a mesma cessar todas a atividades e continua a existir ainda hoje, pelo que foram e continuam a ser necessários investimentos na infraestrutura.
O próprio reator continua, mais de duas décadas depois, a ser um risco não só para o país como para toda a Europa, pelo que é necessário um contínuo controlo da central. Em 2013, por exemplo, uma das paredes e parte do telhado da infraestrutura construída em redor do reator 4, cujo objetivo era evitar que material radioativo fosse libertado para o ambiente, caíram.
Após o acidente de 1896, cerca de 200 toneladas de material radioativo ficaram a céu aberto suscetíveis a depositarem-se pela região e pelo próprio continente. Perante a ameaça de que tal acontecesse, as autoridades ordenaram a construção urgente de uma infraestrutura que evitasse que esse tipo de material vazasse. A construção foi feita o mais rápido possível, mas nem sempre nas melhores condições, pelo que o seu prazo de eficiência foi estabelecido como sendo, no máximo, 30 anos. Os próprios trabalhadores só podiam permanecer nos seus postos por curtos períodos de tempo devido aos elevados níveis de radiação.
A queda de parte da infraestrutura voltou a desenterrar o risco de material radioativo se espalhar, razão pela qual foi necessário um rápido investimento numa nova infraestrutura, concluída em 2016, sete anos depois do começo da construção, e projetada para conter material radioativos durante, pelo menos, um século, como documenta a BBC. Hoje, os riscos são mais controlados, mas continuam a ser feitos investimentos no emprego de trabalhadores e em algum material de controlo.
O que acontece hoje na central de Chernobyl?
A produção de eletricidade pode ter cessado em Chernobyl, e embora a central não tenha, atualmente, nenhum propósito, continua a exigir um controlo e gestão permanentes devido, nomeadamente, à carga radioativa que concentra na sua infraestrutura e que não deve vazar pelo bem da saúde pública.
Na central trabalham atualmente mais de 2 mil pessoas encarregues de regular os níveis de radiação e de controlar os reatores que, embora não estejam ativos, continuam a ser um risco a nível da radioatividade, precisando de ser arrefecidos. “Todas as pessoas que operam na central nuclear de Chernobyl continuam a trabalhar para eliminar as consequências do desastre de 1986 “, disse também à BBC o deputado Ihor Kryvosheyev, presidente do comité para a reparação dos danos do acidente de Chernobyl no Parlamento ucraniano. Os funcionários variam desde cientistas e técnicos a cozinheiros, médicos, membros da guarda nacional, entre outros.
As principais atividades levadas a cabo na central visam, acima de tudo, “garantir a segurança nuclear” de um local com um risco acrescido de ser impactado pela radioatividade. Dentro da infraestrutura concluída em 2016, o reator 4 continua, anda hoje, a sofrer reações de fissão, uma reação química que comprova a instabilidade de um núcleo atómico, resultado da concentração de elementos radioativos, como relata a BBC. Assim, e mais de 36 anos depois, a explosão de Chernobyl continua a impactar a região e a ser um risco para a mesma.
Todas as atividades levadas hoje a cabo na central de Chernobyl exigem que a mesma utilize energia elétrica, pelo que, tecnicamente, a central não está inteiramente parada. Uma quebra no fornecimento de eletricidade podia, inclusive, traduzir-se num risco acrescido de que vazasse para o exterior material radioativo, de modo que, quando chegaram ao local as tropas russas e interromperam este fornecimento, o mundo parou com receio de que o passado se repetisse. Mas havia, de facto, algum risco neste corte de energia? O que significaria?
Uma das mais importantes tarefas realizadas em Chernobyl é o controlo de temperatura do restante combustível nuclear que ainda permanece nos reatores. Isto porque, o combustível nuclear em Chernobyl continua a gerar calor resultado da decomposição dos elementos radioativos que o constituem. O sobreaquecimento do combustível é geralmente controlado por um sistema de arrefecimento que precisa de eletricidade para funcionar. Perante um corte de energia, o principal risco seria que água que compõe este sistema, e que procura manter as temperaturas do combustível nuclear controladas, fosse evaporando e, com ela, algum do material radioativo que se pudesse ter dissolvido. O material seria depois transportado com a água em vapor e dispersado por toda a região.
Aníbal Blanco adverte que uma situação semelhante “não deve acontecer de forma alguma neste tipo de instalações”. “No pior cenário – de perda total de energia por vários dias – a água das piscinas pode evaporar, deixando os elementos do combustível irradiado (ECG) no ar”, explica. A exposição a tais materiais “aumentaria a radiação ambiente e poderia sobreaquecer os ECGs, que poderiam rachar e emitir partículas radioativas para o ambiente”.
Ainda assim, e mesmo que tal acontecesse, este aumento nos níveis de radiação nunca se equipararia a situações como o desastre nuclear de Fukushima, em 2011, ou mesmo à própria explosão de Chernobyl, segundo o testemunho de vários especialistas em energia nuclear à Associated Press. Isto porque, o combustível está agora a arrefecer há cerca de 20 anos pelo que o sobreaquecimento seria mais demorado e dificilmente num intervalo de apenas alguns dias traria algum risco.
Kryvosheyev, por sua vez, tem uma outra visão. “Se a eletricidade for cortada por muito tempo, como o sistema de ventilação do NSC do reator 4 não funciona, é provável que a poeira radioativa ultrapasse a infraestrutura (que o envolve) e se espalhe além da zona de exclusão, contaminando áreas limpas da Ucrânia e Europa “. A preocupação do deputado parece estar não nos reatores 1, 2 e 3, mas antes no reator que há cerca de 36 anos desencadeou um desastre nuclear.
A poeira depositada e a ligeira subida nos níveis de radiação
Durante a permanência das tropas russas na região de Chernobyl, que, entretanto, foi reconquistada pelos ucranianos, verificou-se, de facto, uma ligeira subida nos níveis de radição da região. Isto não foi, no entanto, devido ao corte de energia, mas teve antes origem na poeira radioativa que se encontrava depositada pelas florestas da zona de exclusão e que, à passagem das tropas e veículos pesados russos, foi levantada, explica a BBC. “Aquela poeira radioativa no ambiente acionou os alarmes nos detetores. Então, quando as tropas e os veículos estavam estacionados, ela desparecia e os níveis de radiação caiam para os níveis anteriores”, esclarece Blanco.
Quando as tropas russas tomaram Chernobyl, encontravam-se, na central, cerca de 200 trabalhadores que foram forçados a permanecer na infraestrutura durante 25 dias apesar de tal não ser recomendável dados os elevados níveis de radioatividade do local. “Eles foram feitos reféns e mantidos à força”, denuncia o deputado ucraniano.
Kryvosheyev acusa o exército russo de ter usado a zona de exclusão “como base militar, para armazenar explosivos e munições”, algo que, segundo ele, poderia ter causado um acidente nuclear com “terríveis consequências para a Europa e todo o planeta”, relata a BBC.
As autoridades russas negaram toda e qualquer acusação assegurando que o fornecimento de energia da central nunca foi cortado e responsabilizando a Ucrânia de qualquer eventual incidente que lá pudesse ocorrer.
O futuro de Chernobyl
Atualmente existem planos para cessar todas as atividades em Chernobyl e desmontar a central até 2064 num processo considerado por Blanco complexo por exigir “um planeamento cuidadoso”.
“Além da construção da infrastrutura do reator 4 e da manutenção dos locais onde foram depositados os resíduos radioativos e o combustível irradiado das unidades 1 a 3, há também a transferência desses combustíveis usados e, em seguida, o desmantelamento progressivo das 3 unidades e de materiais que já não são mais utilizados”, explica.
2064 pode ser apenas uma “data de referência” como explica Kryvosheyev. “Os nossos cientistas criaram um plano com as etapas a serem implementadas até aquele ano e o nosso estado está disposto a financiar e a implementar essas medidas”. A central pode até ser desmantelada mais cedo, mas “o problema de Chernobyl está aqui para ficar por milénios”, assegura.