A prática de banir livros não é uma novidade nos EUA, mas nos últimos anos a Associação Americana de Bibliotecas (AAB), responsável por monitorizar este tipo de atividade, registou um significativo aumento nas tentativas de remover livros não apenas dos planos de leitura dentro das aulas, mas também das bibliotecas escolares e públicas.
A tentativa de remoção de livros é uma prática conhecida, em inglês, como “challenges to books”, que traduzimos, em português, para desafios aos livros e consiste, segundo a AAB, em “qualquer tentativa de remover ou restringir materiais ou serviços com base no seu conteúdo”. O efetivo ato de banir corresponde à “remoção de material ou cancelamento de serviços com base no conteúdo”.
O ano de 2021 terminou com manchetes de jornais em todo o país a anunciar desafios impostos a cada vez mais livros e uma luta crescente entre grupos conservadores, que exigem assumir o controlo sobre as leituras dos seus filhos no meio escolar, e grupos que se declaram contra esta “censura”, palavra escolhida pelos mesmos para definir o comportamento de remoção de literatura.
De acordo com a diretora da AAB, Deborah Caldwell-Stone, a AAB recebeu, em 2020, 156 desafios de livros, um número reduzido quando comparado com os 330 desafios de livros que surgiram apenas nos últimos três meses de 2021. “É um volume de desafios que nunca vi no meu tempo na AAB – nos últimos 20 anos. Nunca tivemos um momento em que recebemos quatro ou cinco relatórios por dia durante dias a fio, às vezes até oito num dia”, conta ao The Guardian.
Um novo relatório desenvolvido pela Pen America, uma organização sem fins lucrativos que trabalha para proteger a liberdade de expressão nos EUA, dá indicação de números ainda mais assustadores. Segundo a organização, mais de 1500 livros foram proibidos em múltiplos distritos escolares dos EUA nos últimos nove meses. “Este tipo de dados nunca foi registado e, francamente, os resultados são chocantes”, disse Jonathan Friedman, diretor da Free Expression and Education da PEN America.
O relatório foi, segundo a organização, o primeiro a reunir e organizar a informação “livro por livro, distrito por distrito”. Os dados foram recolhidos entre 1 de julho de 2021 e março deste ano, intervalo de tempo no qual foram proibidos 1586 livros em 86 distritos escolares de 26 estados diferentes, como o Texas, Pensilvânia, Utah, Virgínia ou Wyoming.
Bibliotecários e professores já vieram chamar a atenção para a tendência crescente desta prática no país e formaram, inclusive, grupos para a combater. Um exemplo deste tipo de ativismo foi o movimento conhecido como #FReadom criado por Carolyn Foote, uma bibliotecária reformada do Texas que, com ajuda de três colegas, lançou a iniciativa que tem como principal objetivo promover a diversidade literária e combater os desafios aos livros. Em resposta à CNN, Foote declarou: “Queremos anunciar que estamos aqui e que estamos dispostos a falar em nome dos alunos, dos autores e dos livros a que os estudantes devem poder ter acesso”.
Porquê banir certos livros das escolas?
A resposta à pergunta tem divido os EUA. Movimentos como o #FReadom defendem que não existe razão alguma que possa justificar banir um livro das bibliotecas e que essa é uma prática que vai contra a liberdade de expressão dos próprios alunos. Por outro lado, grupos conservadores como o No Left Turn In Education, cuja presidente é Levin-Sheldon, mãe de dois filhos no estado de Virgínia, reclamam que sejam respeitados os direitos dos pais em controlar a educação dada aos filhos, nomeadamente através das leituras a que têm acesso.
Pelos cantos e recantos dos EUA, grupos de pais, membros do conselho administrativo escolar e até políticos estão a acusar os educadores, como professores e bibliotecários, de exporem as crianças e jovens a conteúdo inapropriado à idade. Em estados como o Texas, o governo estatal enviou aos distritos escolares uma lista de cerca de 850 livros, pedindo que fossem informados de quantos exemplares dos referidos livros existiam nas bibliotecas e quanto foi gasto nos mesmos.
Entre esses livros encontra-se a obra literária vencedora do Prémio Pulitzer “The Confessions of Nat Turner” que trata a revolta de escravos ocorrida no estado de Virgínia em 1831. Outras obras contam com “Between the World and Me”, um livro que aborda as diferenças entre negros e brancos na América atual ou “Out of Darkness”, um romance entre um adolescente negro e uma jovem mexicano-americana banido em 16 distritos.
A temática da discussão racial parece ser uma das principais causas para a apresentação de uma queixa contra um livro, segundo a AAB. Também o relatório da Pen America indica que, dos títulos proibidos, 41% incluíam “protagonistas ou personagens secundários proeminentes” de cor com cerca de 22% dos livros proibidos a abordarem “diretamente questões de raça e racismo”.
Igualmente contestado surge também o debate da liberdade de género. Algumas das obras mais contestadas são o livro “LGBT Families”, com foco na mudança das estruturas familiares norte-americanas e na experiência de integrar uma família LGBTQIA+ ou “The Underground Guide to Teenage Sexuality: An Essential Handbook for Today’s Teens, and Their Parents!”, um guia sobre a sexualidade na adolescência e a promoção da educação sexual. Outros títulos que têm sido contestados são, por exemplo, “Gender Queer: A Memoir de Maia Kobabe”, um livro sobre as experiências de Maia Kobabe e a sua descoberta na comunidade LGBTQIA+, banido em 30 distritos escolares, ou “All Boys Aren’t Blue”, que conta a história de um jovem de cor queer ao longo da sua infância e juventude.
Segundo o relatório da Pen America, 33% dos livros proibidos “abordam explicitamente temas LGBTQ+, ou têm protagonistas ou personagens secundários proeminentes que são LGBTQ+”, com os três títulos mais banidos atualmente a serem ou centrados em indivíduos LGBTQ+, ou a tocarem “no tópico de relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo”. Dados da AAB indicam também que, dos dez livros mais discutidos em 2019, oito incluíam referências a conteúdo LGBTQIA+. A lista de livros foi fornecida pelo deputado estatal texano Matt Krause sob o pretexto de que poderiam “fazer os alunos sentirem-se desconfortáveis”.
Para Foote, a lista “está evidentemente focada em alunos LGBTQIA+ e evidentemente focada na raça”. “Só não quero que os alunos sintam que valem menos. Isso foi o que me trouxe aqui”, conta à CNN em referência ao seu movimento #FReadom. Friedman considera que se trata de “um ataque orquestrado a livros cujos assuntos só recentemente ganharam espaço nas prateleiras das bibliotecas escolares e nas salas de aula”. “Estamos a testemunhar o apagar de tópicos que recentemente se traduziam na representação de um progresso em direção à inclusão”, acrescenta.
Uma das preocupações centrais é que a remoção destes livros se traduza na sub-representação de grupos já considerados minorias frequentemente marginalizadas. Becky Calzada, coordenadora da biblioteca do distrito escolar em Leander e parte da equipa de Foote, sentiu, durante a sua infância, essa ausência de representatividade e sabe as consequências que daí podem advir. “Eu cresci a ler a “Trompet of the Swan” e “Little House on the Prairie” e não havia meninas hispânicas”, conta à CNN. “Isto funciona como o oposto de um serviço para as crianças e, por isso, trabalhamos muito como bibliotecárias para garantir que as crianças têm livros nos quais se possam rever”.
Também na Pensilvânia o conselho escolar de Central York proibiu, em setembro de 2021, uma longa lista de livros, cujos títulos eram, na sua maioria, de ou sobre pessoas de cor. Quatro escolas do ensino secundário no distrito escolar de Canyons, em Utah, removeram cópias de pelo menos nove livros, incluindo títulos como “Gender Queer, de Maia Kobabe” ou “The Bluest Eye”, um livro da vencedora do Pulitzer Toni Morrison, cujo foco é a opressão racial e de género, informou o Deseret News.
No Oklahoma, um projeto de lei foi apresentado no Senado Estatal com o intuito de proibir bibliotecas de escolas públicas de fornecer aos alunos livros nos quais se concentram assuntos ligados à prática de atividades sexuais e a tópicos como a identidade sexual ou de género. “O nosso sistema educacional não é o lugar para ensinar lições de moral que deveriam ser deixadas para os pais e famílias. Infelizmente, no entanto, mais e mais escolas estão a tentar doutrinar os alunos, expondo-os a currículos e cursos que incluem temas de identidade de género, sexual e racial”, pode ler-se na declaração do projeto-lei.
A censura de livros tem acompanhado uma onda de legislações da direita conservadora americana que focam os tópicos que acreditam que devem e não devem ser discutidos nas escolas. Em março, o estado da Flórida aprovou um projeto de lei apelidado de “não diga gay”, que proíbe as escolas de abordarem questões como a orientação sexual ou a identidade de género desde o infantário até ao terceiro ano.
A força conservadora
Como o movimento No Left Turn in Education, existem muitos grupos com objetivos semelhantes. Moms for Liberty é um grupo organizado de encarregados de educação com “o desejo de defender os direitos dos pais nos vários níveis governamentais”, segundo o seu site oficial. O grupo já propôs e tem organizado esforços para banir vários livros dos currículos escolares.
O movimento é promovido no site do Parents Defending Education (PDE), um outro grupo conservador que, em maio do ano passado, uniu forças com o No Left Turn in Education para redigir uma carta a Miguel Cardona, secretário de educação dos EUA, na qual expressaram a sua preocupação com os esforços federais para incluir livros focados em compreender as consequências da escravidão e as contribuições dos negros americanos na sociedade dos EUA.
No seu site oficial, a PDE anuncia-se enquanto uma “uma organização nacional que trabalha para recuperar as escolas de ativistas que promovem agendas prejudiciais(…) Estamos a lutar contra a doutrinação na sala de aula – e pela restauração de uma educação saudável e não política para os nossos filhos”.
Asra Nomani, vice-presidente de estratégia e investigações do PDE, criticou na Fox News alguns livros como Woke Baby e Gender Queer, que estão nas bibliotecas do estado de Virgínia. O grupo tem no seu site oficial uma lista de livros que considera problemáticos, assim como algumas questões que acredita que devem ser afastadas do ensino, nomeadamente a teoria racial crítica.
O site do grupo incentiva os pais conservadores a candidataram-se a conselhos escolares e inclui estratégias de como ganhar um maior poder de influência nas Associações de Pais e Professores. O grupo apela ainda a que os pais estejam atentos às “páginas de redes sociais de professores e administradores da sua escola” que podem conter “conteúdo incriminatório”.
“Observamos que há vários grupos como Moms for Liberty, Parents Defending Education, No Left Turn in Education, que têm opiniões particulares sobre o que é apropriado para os jovens, e estão a tentar implementar a sua agenda – particularmente em escolas, mas também estão a levar as suas preocupações para as bibliotecas públicas”, contou ao The Guardian Caldwell-Stone.
Os vários grupos conservadores que se têm vindo a formar pelo país estão, segundo o The Guardian, frequentemente ligados a milionários de direita que apoiam a causa e financiam as iniciativas, embora muitas vezes se apresentem como grupos pequenos com raízes locais.
O outro lado
Com o aumento de grupos da força conservadora, aumentaram também os grupos de oposição que defendem o direito à liberdade de expressão e acusam a remoção de livros de ir contra a primeira emenda prevista na Constituição norte-americana, que antevê que “o Congresso não crie nenhuma lei que envolva qualquer estabelecimento religioso ou que proíba o seu livre exercício. Protege a liberdade de expressão, a imprensa, reunião e o direito de petição ao Governo para a reparação de queixas”.
O #FReadom é apenas um de muitos movimentos contra os desafios a livros. A “National Coalition Against Censorship” tem contribuído com uma base de dados sobre o tópico da remoção de livros no país, incluindo uma lista de todos os livros banidos ou desafios a livros nos EUA e as razões apontadas pelos grupos conservadores para a sua remoção. Outras iniciativas incluem a distribuição dos livros banidos fora dos perímetros escolares e o apelo para que os próprios autores enviem mais cópias dos livros para os estados afetados.
Também em resposta ao The Guardian Kim Anderson, diretor executivo da National Education Association, argumentou que a proibição de livros que abordam questões raciais ou dos grupos LGBTQIA+ não irá afetar apenas essas comunidades. Livros que abordam esse tipo de tópicos constituem uma oportunidade para todos os alunos de aprenderem “uma verdade honesta e precisa da nossa história (dos EUA)”. “Censurar toda a história da América impacta-nos a todos como país”, acrescentou Anderson.
Para o diretor executivo, “a beleza da América” está na sua “diversidade”, sem a qual o país fica enfraquecido. A remoção de livros “é ofensiva, certamente, para pessoas de cor e outros norte-americanos que têm sido, tradicionalmente, marginalizados, mas não dizermos a verdade também prejudica os alunos”.
A juntar-se à luta estão também os próprios alunos que se têm organizado em protestos por todo o país contra as medidas de proibição de livros. No estado de Pensilvânia, quando se anunciou a proibição de um conjunto de livros em setembro de 2021, vários alunos reuniram-se para protestar em frente à escola secundária de York County, conseguindo anular a medida que já havia sido efetivada. Também no estado de Virgínia um grupo de estudantes conseguiu revogar a proibição de alguns livros.
Em vários locais do EUA têm surgido “Clubes do livro proibidos”, onde os jovens se encontram para ler e discutir títulos censurados nos seus distritos escolares. Por outro lado, as vendas de livros como “Maus”, uma novela gráfica sobre o Holocausto vencedora do prémio Pulitzer, subiram significativamente em janeiro deste ano, depois de este ter sido banido num conselho escolar do Tennessee.
O aumento dos desafios de livros nos últimos anos já foi associado por alguns especialistas à situação de confinamento que poderá ter permitido aos pais ter uma atenção redobrada sobre as leituras dos filhos. Também as redes sociais foram consideradas potenciadoras do fenómeno, segundo Caldwell-Stone. “As redes sociais estão a ampliar os desafios locais que se estão a tornar virais, mas também temos observado várias organizações a incentivar membros locais a irem às reuniões do conselho escolar sobre os desafios de livros. O que estamos a ver parece ser uma campanha para remover livros, principalmente livros que falam sobre temas como a comunidade LGBTQIA+ e livros que falam sobre o racismo.”