Um festival atento ao mundo, para que o mundo esteja atento ao festival. A crise económica e o protesto passam pelo X DocLisboa, de 18 a 28 de outubro, na Culturgest, Londres, São Jorge, Cinemateca e outros espaços da capital. O cinema documental vai à luta. Saiba o que não se deve perder, secção por secção
O DocLisboa passou ao ataque. A edição deste ano mais do que espelhar a crise, irradia a revolta. Estamos perante um festival de intervenção, se considerarmos que o termo se pode aplicar também a quem programa e não só a quem cria. Até porque quem programa, à sua maneira, também cria um bocadinho. A Apordoc, como muitas outras associações de utilidade pública e cultural, sofreu um grande corte de subsídios e apoios. Tal obrigou o DocLisboa a uma profunda reestruturação. “Tivemos que reinventar o festival”, afirma, em conversa com o JL, Cíntia Gil, um dos elementos do triunvirato que compõe a direção, juntamente com Susana Sousa Dias e Cinta Peleja. E acrescenta: “Esta edição exige uma força sobre-humana que nasce da consciência clara que este é um ano de resistência e se não o fizermos isto acaba. Um ato de resistência e provocação”. Susana Sousa Dias faz mesmo questão de afirmar: “Resistimos atuando,, isto é o que fazemos quando nos sentimos ameaçados. Este ano é determinante”.
É com toda essa atenção ao mundo em que vivemos e, também, à conjuntura de crise que atravessa a Europa, que a programação foi construída, de forma vincadamente política e social. Exemplo disso é a criação da secção Cinema Urgente, que reflete esse pulsar do mundo, com a mostragem de filmes de produção e consumo instantâneos, que habitualmente só circulam nas redes sociais. Outro exemplo dessa intenção política é a retrospetiva de filmes coletivos, mostra do frenesim político-social dos anos 60 e 70.
Também por uma questão de afirmação, o cinema português vai estar em destaque de forma transversal em todas as secções do festival. Inclusive, A Última vez que Vi Macau, de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata será o filme de abertura (o de encerramento é César deve morrer, dos irmãos Taviani). É criada ainda uma secção específica para filmes de escola, Verdes Anos, que, para já, ainda não será competitiva. E em Passagens, outra das secções novas, que busca as zonas de fronteira entre o cinema e as artes plásticas, vai estar em foco Pedro Costa e Chantal Akerman. A realizadora francesa merece ainda uma retrospetiva na Cinemateca. Fernando Lopes é homenageado em ano de grandes perdas para o cinema mundial. O Doc não deixa de assinalar os 20 anos do Curtas de Vila do Conde, reconhecendo o seu papel no cinema português, com as produções próprias daquele festival. Fora da tela, um colóquio internacional com o tema das Passagens. Mesas redondas sobre “RTP e serviço público”, “O Cinema e a Crise na Europa do Sul” ou “Os Laboratórios de Cinema Independentes”. Espaço ainda para uma masterclass de Andrei Ujica, autor de A Autobiografia de Nicolae Ceausescu ou um workshop de realização. O DocLisboa é um festival com um forte sentido de cidadania que acredita que resistir é vencer. Ou, como diz Susana Sousa Dias: “Não é um festival de pura fruição, queremos criar qualquer coisa mais atuante”.
CINEMA DE URGÊNCIA
Basel Chehade, um jovem realizador sírio, estava a filmar o conflito em Homs quando foi assassinado por um francoatirador. Esse pequeno filme, de apenas quatro minutos, retrato de um cinema corajoso até ao limite, vai passar no Cinema de Urgência, uma das grandes novidades do DocLisboa deste ano. A ideia é apresentar obras que se prendem de forma muito clara com a atualidade e que são de divulgação urgente. Em geral, estes filmes usam meios de produção rudimentares e muitos deles circulam pelas redes sociais. É raro encontrarmos este tipo de filmes numa sala de cinema. Da secção faz parte, por exemplo, Thanassis, sobre o famoso cão que tem acompanhado os manifestantes gregos. Também há alguns filmes portugueses, como uma curta sobre a Es.Col.A da Fontinha, feita por um coletivo; São Lázaro 94, sobre a ocupação de um prédio em Lisboa; ou Artigo 45.º, que mostra acontecimentos da manifestação de 22 de maio, em Lisboa. “É mesmo uma urgência criar uma secção. São filmes feitos no momento mas não são legitimados. Desta forma, nós concedemos-lhes essa legitimação”, explica Susana Sousa Dias. “São obras que se caracterizam pela imediatez dos acontecimentos e a necessidade de dar conta deles. O espaço entre a feitura do filme e a difusão é mínimo”, acrescenta Cíntia. O programa desta secção não está completamente fechado, porque a organização quer salvaguardar a chegada à última hora de algum filme urgente.
OH MARQUÊS VEM CÁ ABAIXO OUTRA VEZ, de João Viana. A ideia de fundo é que, por força das circunstâncias políticas, o cinema português passou à atualidade. Na prática, João Viana, autor de algumas curtas de grande qualidade, como A Piscina, desenha um contexto visual coerente, sobre o qual recolhe depoimentos de gente do cinema, como Alberto Seixas Santos, João Salaviza, Sandro Aguilar, Edgar Pêra ou Marco Martins. Todos eles falam em surdina, para acentuar a ideia de conspiração secreta. Um filme de grande pertinência.
São Jorge, dia 27, às 15
RISCO E ENSAIOS
É uma das secções mais marcantes do DocLisboa, que mantém há longos anos o mesmo curador, Augusto M. Seabra. Os filmes aqui apresentados são particularmente desafiantes. Por um lado, situam-se em territórios de fronteira, muitas vezes entre o documentário e a ficção mas, em geral, com um cunho experimentalista dominante. Muitas vezes, há um desafio feito ao próprio cinema e aos seus limites. O cariz atuante do festival está patente em algumas escolhas. É o caso de Ander, Molussien, de Nicolas Rey, realizador que vai estar presente numa mesa redonda sobre laboratórios, numa altura em que Portugal deixou de ter a Tobis, o único laboratório de película, discute-se a importância deste suporte. Também em destaque Free Radicals, uma história do cinema experimental, por Pip Chodorov, que estará presente no festival; Meteor, da dupla Christoph Girardet e Mathias Müller, feito através de corta e cola de cenas de outros filmes; duas obras de Apichatpong Weerasethakul, um dos mais falados realizadores da atualidade; Two Years at the Sea, do inglês Bem Rivers, que se caracteriza pelo livre uso de diferentes tipos de película e de maquinaria; ou Manhã de Santo António, a curta de João Pedro Rodrigues, vencedora do melhor filme europeu em Vila do Conde. A secção é dedicada a Chris Marker, Marcel Hanoun e Stephen Dwoskin.
RECONVERSÃO, de Thom Andersen. Foi uma das encomendas de Vila do Conde para celebrar 20 anos de festival. A ideia inicial era fazer um documentário sobre a arquitetura da cidade do Porto. Mas quando descobriu Eduardo Souto Moura, o realizador americano Thom Andersen não quis saber de mais nada. Ao longo do filme, feito de forma pouco convencional, projeto por projeto, vamos percebendo como Andresen chega ao âmago da arte de Souto Moura, descobrindo a chave no conceito de ruína. Reconversão é um filme de sentido de humor bem apurado, que desconstrói a arquitetura de forma inteligente e que desemboca numa paixão por Miles Davis.
Culturgest, dia 26, ás 18 e 30; Londres, dia 28, às 16 e 45
INVESTIGAÇÕES
À partida é a secção em que os filmes mais obedecem a conceitos próximos do jornalismo, mas num festival em que a transversalidade é um ponto de honra, já nem isso é assim tão linear e alguns dos filmes apresentados rompem definitivamente com a ideia de reportagem. Em muitos deles, diga-se também, essa proximidade com a atualidade não impede uma alta qualidade cinematográfica. Este ano, encontram-se filmes muito diferentes, como Mito Antroplógico Televisivo, em que a História é contada através de histórias da televisão siciliana, sendo que a montagem por si só serve de denúncia das relações entre poder, máfia e família. Ou Nuclear Nation, um impressionante relato sobre o exílio dos habitantes de Futaba, região da central de Fukushima.
EDIFÍCIO ESPAÑA, de Victor Moreno. No centro de Madrid, existe uma espécie de Empire State Building em versão espanhola. Um edifício opulento, construído pelo regime de Franco, que durante muitos anos funcionou como hotel. Com o tempo, o seu protagonismo foi substituído por novas construções, mais modernas, mais altas e exuberantes. O Edifício España para ali ficou, vetado ao abandono, até que, em 2007, foi decidido o seu restauro que consistia na reconstrução total do seu interior, mantendo apenas a fachada. Vitor Moreno acompanha esse processo. Ao mesmo tempo que tira o pulso ao próprio prédio, vai encontrando os trabalhadores, de diferentes nacionalidades, tentando chegar à sua intimidade. E dentro da grande história se vão descobrindo histórias. Só que, entretanto, as obras do Edifício España são abortadas, ficando as ruínas do seu interior escondidas pela opulência da fachada. Para muitos, é uma metáfora do país.
Culturgest, dia 19, às 18 e 45; Londres, dia 22, às 21 e 15, e dia 24, às 19 e 15
COMPETIÇÕES
Os filmes portugueses têm uma importância fulcral no DocLisboa. E, este ano, atravessam mesmo todas as secções. Mas obviamente que a Competição Nacional está sempre em grande destaque e os prémios para os portugueses em tempos de crise são de relevância acrescida. Estão nove longas-metragens e oito curtas em concurso, que, curiosamente, se afastam da cidade em direção ao campo. Entre as quais Cativeiro, o primeiro filme de André Gil Mata; o retorno de Nathalie Mansoux, desta vez com Deportado, uma história açoriana; O Regresso, de Júlio Alves, passado na aldeia de Mega Fundeira; e Terra de Ninguém, de Salomé Lamas. Na competição internacional que, tal como acontece com a nacional, teve um maior número de filmes inscritos, competem 11 longas e 10 curtas. O destaque, claro está, vai para…
A ÚLTIMA VEZ QUE VI MACAU, de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata. Depois do prémio no Festival de Locarno e da boa receção internacional, estreia-se finalmente em Portugal. É um filme na fronteira entre o documentário e a ficção. Parte do reencontro do realizador com a Macau onde cresceu. Há uma trama criminal, com contornos fantásticos. O protagonista faz a viagem em auxílio de uma velha amiga que está em apuros. E é sobre esse pretexto ficcional que o documentário se desenvolve. Entre as brumas da memória, o que sobra é uma perspetiva solitária da cidade com a maior densidade populacional do mundo. É extraordinária a forma como os realizadores conseguem fazer da multidão uma massa opaca, quase sem rosto, que se confunde na paisagem e, no meio de tanta gente, filmar o vazio.
Culturgest, dia 18, às 21 e 30; Londres, dia 23, às 16 e 45
UNITED WE STAND, DIVIDED WE FALL
O cinema é por excelência uma arte coletiva. Mas, regra geral, os filmes são dos realizadores, que assumem a função de supervisionar a obra em todas as suas vertentes. É deles a assinatura. Mas não tem que ser assim. Nos anos 60 e 70, foram criados muitos filmes coletivos, feitos por grupos diversos, geralmente com uma intenção política ou na defesa de uma causa. É o caso de Contra a Guerra, sobre o conflito do Vietname, da autoria do Winterfilm Collective; Abaixo o Colonialismo, Abaixo o Fascimo, pelo Coletivo Cinematográfico de Alunos Argelinos; L’Agettivo Donna, pelo Coletivo Feminista di Cinema di Roma; ou Luta de Classes no Reino Unido, por Berwick Street Film Collective. A seleção é de Federico Rossin.
QUANDO O POVO DESPERTA, de Colectivo dela Unidad Popular. É uma espécie de versão chilena de Torre Bela, só que em vez do olhar exterior de Thomas Harlam, aqui encontra-se um ponto de vista interno, que não invalida a existência de uma espécie de contraditório. Mas, em suma, o filme é um retrato amplo do Chile e do seu caminho para o Socialismo, fazendo, naturalmente, de Salvador Allende o grande herói do povo. Mostra essa mesma insurreição popular e a defesa do socialismo como a única via para a libertação dos oprimidos. Datado de 1973, Quando o povo desperta é um precioso documento histórico.
Londres, dia 27, às 16 e 15
HEARTBEAT
É, desde sempre, uma das secções mais concorridas do DocLisboa. As relações entre o cinema documental e a música produzem os mais belos frutos. Talvez por isso, o programa tenha vindo a alargar-se ao longo dos tempos e hoje torna-se muito representativo. Na edição de 2012, destaca-se a forte presença de filmes portugueses. A começar por Visões Madredeus, de Edgar Pêra, uma espécie de diário filmado e manipulado, com que se abre a secção. Diogo Varela Silva faz uma viagem pela vida e pela arte de Beatriz da Conceição, uma lenda viva do fado popular. O imparável Tiago Pereira que se tem revelado um autêntico Michel Giacometti da câmara de filmar, apresenta Não me importava de morrer se houvesse guitarras no céu, em que parte em busca da Chamarrita dos Açores. Inês Gonçalves e Kiluane Liberdade prosseguem a sua busca por sonoridades africanas, desta vez com Semba e Kizomba. Há espaço ainda para Bill Calahan, LCD Soundsystem, Sonny Rollins, Don Cherry, Stravinsky e muito mais.
TROPICÁLIA, de Marcelo Machado. Foi um movimento efémero da música brasileira pós-bossa nova, criado por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Tom Zé, entre outros. Dali partiram todos estes para percursos grandiosos, de reconhecido génio. Na sua génese, o movimento tropicalista quis afirmar a cultura brasileira, numa fase de americanização crescente, mas acabou por funcionar como mais uma voz contra a ditadura militar, que resultou, de resto, na prisão e exílio de Caetano e Gil. O filme, preciso documento histórico, conta toda esta história, mostrando sobretudo imagens de arquivo. Curiosamente, as primeiras imagens são de um concerto de Caetano e Gil em Lisboa (ainda a caminho de Londres), onde, em palco, são entrevistados por Raul Solnado e Carlos Cruz.