Júlia Carmona e Luana Custódio entram no palco com a boca tapada com fita adesiva. Não podem falar, não conseguem expressar o que querem, ficam muitas palavras por dizer. Enquanto a plateia de 300 alunos ouve Grândola, Vila Morena, canção de Zeca Afonso, que passou na rádio e funcionou como senha do Movimento das Forças Armadas para derrubar o regime em abril de 1974, as duas locutoras da Rádio Miúdos e apresentadoras da festa final de “Miúdos a Votos” conseguem tirar a fita adesiva da boca.
“Liberdade, sempre!”, apelam alto e bom som.
Guilherme d’Oliveira Martins, administrador-executivo da Gulbenkian, que há vários anos recebe a festa final de “Miúdos a Votos”, dá as boas-vindas. Este ano, todos os adultos convidados a subir ao palco foram desafiados a escolher um livro que, para si, represente a ideia de liberdade.
Por isso, Guilherme d’Oliveira Martins sugere a leitura de A Menina do Mar, de Sophia de Mello Breyner Andresen, desafiando que todos tenhamos a capacidade de encontrar num livro um amigo, que nos diz que não estamos sós.
A música continua, quando a turma da Escola Básica Padre Himalaya, inspirada n’O Tesouro, de Manuel António Pina, sobe ao palco para dizer algumas quadras criadas pelos alunos sobre proibições e liberdades conquistadas.
Uma das alunas canta E Depois do Adeus, música interpretada por Paulo de Carvalho no Festival RTP da Canção, em 1974. É o primeiro grande momento desta grande festa, a arrecadar muitos aplausos e com muitos dos adultos na sala a trautearem a canção.
“Só vocês [crianças] me faziam sair da Ericeira e vir para Lisboa”, desabafa, divertida, Alice Vieira, a homenageada desta edição de “Miúdos a Votos” que, entretanto, é chamada ao palco. A jornalista e escritora, exímia contadora de histórias, tem sempre boas memórias para contar sobre os tempos anteriores à Revolução dos Cravos.
Hoje, vocês não fazem ideia de como funcionava a censura, diz. Alice Vieira guardou alguns recortes censurados desse tempo e dá alguns exemplos, como quando, em 1967, o Papa Paulo VI veio a Portugal quase não se escreveram artigos na imprensa sobre a sua visita. Como tinha recebido no Vaticano os líderes dos movimentos de libertação de Angola e de Moçambique não era uma pessoa apreciada pelo governo português.
Também quando escreveu sobre a atriz Grace Kelly, que se tornou Princesa do Mónaco, e disse no texto que era filha de um pedreiro, a censura não deixou passar a profissão do pai, pois era “indigno” uma pricea ter um pai pedreiro. O que Alice não escreveu é que o pai era milionário….
Inspirados por Malala
A festa no auditório da Gulbenkian continuou com outras apresentações, muitas inspiradas na vida de Malala Yousafzai, jovem ativista nascida no Paquistão cuja valentia contra os talibãs faz com que os mais novos desejem que existissem no mundo mais pessoas como a Malala.
As crianças do Agrupamento de Escolas D. Maria II de Lamaçães, em Braga, prepararam uma canção hip hop e com os seus bonés, capuzes e hijab (lenço a cobrir a cabeça) dão ritmo à atuação.
O primeiro anúncio da tarde foi o livro mais votado pelos alunos do 1º ciclo, com mais de 4000 votos escolheram Harry Potter e a Pedra Filosofal. A propósito de fantasia e magia, o externato A Minha Escola, de Paço d’Arcos, criou vários momentos de magia com as bruxinhas e feiticeiras da turma. Deu para soltar algumas gargalhadas!
A Escola Básica do Ave, da Póvoa de Lanhoso, inspirou-se no livro O Diário de um Banana – Frauda Xeia para mais um momento musical. Acompanhados à viola, entoaram um poema sobre a liberdade de abrir um livro quando se quer.
Adriana Afonso, da Sociedade Ponto Verde, revelou o livro mais votado pelos alunos do 2º ciclo, com mais de 6000 votos. A escolha de Avozinha Gângster parece não ter sido unânime e gerou algum burburinho na sala. E como sugestão de leitura falou do livro 25 de Abril – No Princípio Era o Verbo.
Quem também esteve presente foi Alexandre Homem Cristo, Secretário de Estado Adjunto e da Educação, que se mostrou surpreendido e impressionado com esta festa, e elogiou a iniciativa da VISÃO Júnior e da RBE, que alia leitura a cidadania. E, claro, não voltou à plateia sem antes fazer a sua sugestão de leitura: O Ratinho e o Muro Vermelho, que costuma ler à sua filha de 8 anos, e que suscitou muita curiosidade.
O poder das imagens e das palavras
Seguiu-se a dramatização inspirada em O Principezinho, pelos alunos do 4.º S1, do Colégio A Minha Escola, que deixou uma importante mensagem: “Façam sempre muitas perguntas!”
Além de muita música e dramatizações, foram também apresentadas duas peças jornalísticas sobre a iniciativa “Miúdos a Votos”, realizadas na TV na Maior, o canal de televisão escolar da Escola Secundária de Santa Maria Maior, de Viana do Castelo; um rap sobre Avozinha Gângster cantado por um quarteto da Escola Armando Lizandro, de Coruche; um podcast, ou melhor, um vídeocast sobre o holocausto, inspirado no livro O Rapaz do Pijama às Riscas, feito pela Escola Básica e Secundária do Levante da Maia; dois booktrailers assinados pelos alunos do 8º ano da Escola Básica de Caldas de Vizela, um para o livro A Culpa É das Estrelas e outro para O Homicídio Perfeito, Um Guia Para Boas Raparigas.
Depois de a EB Martim de Freitas, de Coimbra, ter cantado “A Viúva e o Papagaio”, seguiu-se um momento mais intimista. Foi com atenção que todos assistiram à performance sobre O Diário de Anne Frank, com cerca de 20 alunos da Escola Secundária de Paços de Ferreira em palco.
O antissemitismo, a ida para o campo de concentração, seres humanos inferiores e superiores, genocídio e guerra foram alguns dos temas abordados numa atuação muito aplaudida por todos.
Com Luísa Loura da Pordata, um dos parceiros de “Miúdos a Votos”, ficámos a saber mais sobre como se desenrolou o processo desde a inscrição dos livros até à contagem dos votos numa iniciativa em que participaram 959 escolas, incluindo duas dos Açores, duas de Angola e uma em França, e 120 mil alunos. Com 37% de abstenção, Luísa Loura encoraja a fazer mais e melhor campanha eleitoral. Como sugestão de leitura, a especialista em estatística falou de Dinossauro Excelentíssimo, de José Cardoso Pires.
Só depois de rufarem os tambores, som feito pelos pés dos alunos a baterem no chão, foram anunciados os livros mais votados do 3º ciclo, Avozinha Gângster, e do secundário, O Rapaz do Pijama às Riscas.
Os alunos ainda levaram mais uma sugestão de leitura, dada pelo diretor da VISÃO, Rui Tavares Guedes: A invenção do amor, poemas de Daniel Filipe sobre o amor e a liberdade. “Um livro que cabe no bolso, assim como andamos com o telemóvel, para ler numa pausa, num banco de jardim.”
A festa acabou tal como começou, com canções e música. Os intérpretes da Escola Básica da Mata, de Estremoz, cantaram afinados e de cravo na mão “Vamos lutar a cantar”. Para que sejam sempre ouvidos. No final da atuação, que deixou a sala ao rubro, distribuíram cravos e deixaram uma vontade em todos os que ali estiveram: que chegue depressa mais uma grande festa de “Miúdos a Votos: Quais os Livros mais Fixes?”