É preciso navegar pelas salas do MAC/CCB para encontrar um mapa valioso: o emaranhado de linhas que ligam as fotografias a preto e branco na parede do museu é um sistema circulatório a irradiar de Peggy Guggenheim, captada com um meio-sorriso e abraçada a um dos seus cães. É uma constelação das amigas, rivais, descobertas, zangas, paixões, acasos da multidão com cromossoma XX que participou na primeira exposição americana de artes plásticas feita apenas com artistas femininas.
Inaugurada a 5 de janeiro de 1943, na histórica Galeria Art of This Century, que Peggy manteve em Nova Iorque, By 31 Women [Por 31 Mulheres] é um título simples para um projeto revolucionário: o de revelar as “contribuições substanciais, e muitas vezes negligenciadas, das mulheres para o mundo da arte”, numa época em que o discurso era dominado pelos maridos, amantes, mestres masculinos, em ambos os lados do Atlântico. E nestas paredes, há vidas fascinantes.
Como a da pintora britânica Meraud Guinness Guevara (1904-1993), filha de um magnata, próxima de Francis Picabia e Alberto Giacometti, influenciada pelo realismo, mas que se dedicou a promover a obra do ex-marido artista durante as suas últimas quatro décadas de vida. Ou a da francesa Valentine Hugo (1887-1968), casada com um bisneto do escritor Victor Hugo, colaboradora do Ballets Russes e de Jean Cocteau, cujos figurinos, desenhos e pinturas tinham uma qualidade etérea. Por ser a única do movimento surrealista que tinha carro, Valentine conduziu muitas vezes André Breton, Dalí ou Max Ernst até às suas exposições…
Os nomes abundam neste organigrama cenografado no MAC/CCB e levantam perplexidades sobre a sua invisibilidade: aqui está o da americana Sonja Sekula (1918-1963), pintora associada ao movimento do expressionismo abstrato, atormentada por problemas de saúde mental que a levariam ao suicídio, que contactou com as já reconhecidas Leonora Carrington e Frida Kahlo numa viagem ao México, e que teve a primeira apresentação pública em By 31 Women antes de ser esquecida.

Libertações
Uns metros à frente, inscreve-se o nome da americana de origem romena Hedda Sterne (1910-2011), que passou por Lisboa ao fugir da agitação política de Bucareste, em 1941, a caminho de Nova Iorque: próxima do movimento Dada, influenciada pelos surrealistas, integrou os chamados 18 Irascíveis (grupo que escreveu uma carta de protesto ao Metropolitan Museum of Art, acusando a instituição de conservadorismo estético).
Artista prolífica e com amigos famosos (dela se diz que convenceu Saint-Exupéry a usar os próprios desenhos no livro O Principezinho), queixava-se de ter 80 anos de trabalho apagados pela fotografia tirada no âmbito dos 18 Irascíveis: era a única mulher captada ao lado de Mark Rothko, Willem de Kooning ou Jackson Pollock… Mas Hedda chamou a atenção da sua vizinha em Nova Iorque: Peggy Guggenheim.
Acolá, uma minúscula fotografia revela uma mulher loira e de biquíni florido: é a pintora francesa Jacqueline Lamba (1910-1993), amiga íntima de Frida Kahlo, que foi casada primeiro com André Breton e depois com David Hare. Após o segundo divórcio, Jacqueline confessou: “Pintei obras surrealistas para agradar a Breton e paisagens expressionistas para agradar a Hare, mas agora pinto por mim.” Lamba é um dos muitos casos de “a mulher à sombra de”, sendo objeto de uma retrospetiva numa galeria apenas em… 2023. É irónico e comovente descobrir que a sua filha, Aube, a descreveu na pedra fúnebre como “a noite do girassol”. Sombra, descaso, esquecimento, foram destinos partilhados pela larga maioria das artistas presentes na exposição original By 31 Women, evocada agora em 31 Mulheres. Uma Exposição de Peggy Guggenheim.

Na autobiografia de Peggy Guggenheim, Out of This Century – Confessions of an Art Addict (Fora Deste Século – Confissões de uma Viciada em Arte, de 1960), a colecionadora referiu que a ideia deste projeto de género partiu do dadaísta Marcel Duchamp, seu amigo e conselheiro, a que se juntaram o surrealista-mor André Breton, o artista plástico Max Ernst, o curador James Johnson Sweeney e o galerista Howard Putzel.
By 31 Women foi uma pedrada no charco: as artistas revelaram-se libertas dos clichés da época, mostravam linguagens originais, imagéticas fortes. A exposição que agora se apresenta no MAC/CCB (integrada no contexto da remodelação da exposição permanente do museu, dedicada à “deriva atlântica”), é uma homenagem ao projeto de Peggy Guggenheim e às suas pioneiras. “Incluem-se artistas que questionam, matizam ou reformulam os pressupostos patriarcais em que assentavam esses movimentos, reduzindo a mulher, no caso do surrealismo, a modelos passivas, musas, femmes fatales ou femmes-enfants e, no caso da abstração, a uma conotação decorativa, permitindo uma leitura crítica e dando continuidade à ideia de rever as narrativas canónicas do século XX”, sintetiza Nuria Enguita, diretora artística do MAC/CCB.
Comissariada por Patricia Mayayo, patente até 26 de junho, 31 Mulheres. Uma Exposição de Peggy Guggenheim está organizada por quatro blocos temáticos: O “Eu” como Arte (em que se destacam a autorrepresentação e o esbatimento da identidade convencional como estratégias criativas); Estranhamente Familiar (que evoca o conceito freudiano de “unheimlich”, em que objetos e paisagens familiares e interiores domésticos adquirem características desconhecidas e inquietantes); Bestiários (relacionado com a representação de animais e a transfiguração dos corpos femininos em criaturas, simbolizando, por exemplo, a libertação das regras patriarcais); e ainda O Caminho do Meio: Linguagens da Abstração (assinalando que, além do surrealismo predominante, houve também aqui uma larga produção abstrata).
Visões raras
É na companhia da diretora artística do MAC/CCB que a VISÃO circula pela “cápsula” feminina dentro do museu. “Muitas destas mulheres eram amantes de surrealistas, mas eram artistas por direito próprio”, sublinha Enguita. 31 Mulheres. Uma Exposição de Peggy Guggenheim “não é uma recriação”, refere, é uma “homenagem” que valoriza as artistas presentes nessa exposição histórica – as obras patentes são uma aproximação das que foram mostradas em 1943.

Há obras-primas a contemplar aqui, peças emocionantes. Veja-se o quadro Les Moeurs Espagnoles (1943), de Dorothea Tanning, povoado por uma das suas características figuras alongadas, uma mulher de cabelo erguido com uma saia em chamas, convocando urgência. Ou os cavalos algo antropomorfizados do óleo Les Chevaux de Lord Candlestick (1938), de Leonora Carrington. Impactantes são também o diminuto desenho abstratizante de Frida Kahlo, Venado (1946); o autorretrato de duas faces de Hedda Sterne, insinuando a dualidade entre a identidade exterior e a interior; ou o extraordinário intimismo de Femme em Armure I, de Leonor Fini, num hábil jogo de chiaro-oscuro que desvenda uma mulher numa “armadura feminina e poderosa, num atmosfera algo onírica”, como aponta Nuria Enguita.
Perto, a divertida fruteira com maminhas, Untitled (Bowl of Breasts), (C. 1946-52), de Gypsy Rose Lee, artista de burlesco e de strip-tease – de quem igualmente se mostra um filme num dispositivo tipo peep show, com um buraquinho na parede. E há um estremecimento de reconhecimento perante Souvenir du “Déjeuner en fourrure” (1936-1972), de Meret Oppenheim, que evoca o seu célebre Object (1936), a chávena de porcelana forrada a pele – um ícone do surrealismo com vagas conotações eróticas.
Nuria Enguita vinca que o interessante era ver que as obras destas artistas não se limitavam a um desejo de demarcação dos pares masculinos: “Na época, elas não estavam preocupadas em ser surrealistas, mas sim em libertarem-se dos constrangimentos e restrições sociais e artísticos, quando eram vistas como bonecas, musas, manequins. Estas artistas criaram um corpo de trabalho, transportando-o para outros limites, subvertendo as ideias feitas, transfigurando corpos performáticos.” Nomes como os de Leonora Carrington, Dorothea Tanning e Leonor Fini estão a ser objeto de um ressurgimento recente em exposições e no pensamento crítico, com efeitos poderosos.
Obsessão pessoal
A história de 31 Mulheres. Uma Exposição de Peggy Guggenheim é também a de uma pulsão arqueológica vivida por uma inusitada colecionadora. A americana Jenna Segal, produtora de teatro, televisão e cinema, fascinou-se com Peggy Guggenheim, após visitar a coleção guardada em Veneza e ler a sua autobiografia. Durante a pandemia, ela investigou o projeto da exposição original de 1943, e começou por fazer uma pesquisa no Google para saber por onde andavam aquelas obras. “Percebi que, afinal, a história que eu queria contar podia ser contada através do ato de colecionar as obras de arte”, declarou Segal em entrevista. “Peggy focou-se no que era novo, no que vinha a seguir, na avant-garde, ao contrário do seu tio Solomon [fundador do famosíssimo Museu Guggenheim de Nova Iorque] que se concentrou durante décadas nos velhos mestres. Ela sondou o que havia à sua volta e transformou-se numa especialista por direito próprio, e isso fez muito sentido para mim.”
Especialistas, curadores e investigadores foram convocados para esta missão: Segal comprou a primeira peça em dezembro de 2020, a mesa dourada com pernas de pássaro Traccia, de Meret Oppenheim, mas rapidamente chegou às duas centenas. Algumas obras estão, até, a corrigir os rodapés da História: uma pintura comprada em leilão originalmente atribuída ao artista Jean Arp ganhou coautoria com a mulher deste, a também artista Sophie Taeuber-Arp, porque Segal foi ler as letrinhas pequenas da papelada e percebeu que a peça tinha sido concebida por Sophie e apenas montada pelo marido após a sua morte…
31 Mulheres. Uma Exposição de Peggy Guggenheim > Museu de Arte Contemporânea/Centro Cultural de Belém, Lisboa > até 29 jun, ter-dom 10h-18h30 > €12 (€7 para residentes em Portugal)
Peggy Guggenheim, a colecionadora
A americana criou uma das grandes coleções de arte moderna do século XX
Poderia dizer-se de Marguerite, seu nome de nascimento, que era um Orson Welles em versão feminina, no que respeita à ambição larger than life (negociava os preços das obras de arte com a determinação de um regateador profissional de feira), à voracidade sensual (Peggy gabava-se de ter tido centenas e centenas de amantes, onde se catalogaram artistas como o pintor Yves Tanguy ou o dramaturgo Samuel Beckett, e a que se somaram cinco casamentos quase sempre pouco felizes), às tragédias que não a consumiram (Benjamin, o pai milionário, aparentemente terá vestido o traje de gala enquanto o Titanic afundava na sua viagem inaugural, tinha ela 14 anos; alguns maridos batiam-lhe; a filha Pegeen morreu prematuramente, por overdose de medicamentos, e Peggy nunca admitiu um cenário de suicídio), às tiradas destinadas a provocar e ao look extravagante (são célebres as fotografias da mulher de óculos desmesurados, sempre rodeada pelos seus cães de raça Shih Tzu, ao lado dos quais quis ser enterrada no jardim do Palácio Venier dei Leoni, ou a deslizar na sua gôndola privativa pelo canal).

Todavia, Peggy Guggenheim (1898-1979) não foi uma “pobre menina rica”, mas sim a mulher que vingou num mundo dominado por homens, tendo construído uma das mais extraordinárias coleções de arte moderna, num tempo em que se veneravam os velhos mestres. Acervo esse transformado em museu no palácio veneziano onde morou durante as últimas quatro décadas de vida. Tudo porque, assegurou a própria, durante a sua estada em Paris no primeiro inverno da II Guerra Mundial, tinha comprado uma obra de arte por dia.