“Respira/ para não me distrair.” Os versos que fecham o poema Não Há Tempo, do surrealista Fernando Lemos, espelham bem a missão da Lisbon Poetry Orchestra no novo livro-disco, Os Surrealistas. Mas já lá iremos, a estas páginas e faixas musicais recheadas de criatividade e de imaginação. Por agora, recuemos até 2013 e fixemo-nos no Cais do Sodré, em Lisboa. Todas as segundas-feiras, era lá que se sonhava de olhos abertos: as sessões de poesia dos Poetas do Povo – abertas à participação do público e em que músicos convidados e residentes ilustravam as declamações – fascinavam poetas e cantores, sonhadores e amadores.
“O nosso grande objetivo, desde essa altura, é mostrar que a poesia não tem de ser elitista”, conta à VISÃO o músico e ex-membro da banda Rádio Macau, Alexandre Cortez, um dos fundadores do projeto.
Entre o sucesso do primeiro espetáculo em sala (no Dia Mundial da Poesia, em 2015, esgotaram o Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém) e a edição do primeiro livro-disco, em 2018 (Poetas Portugueses de Agora, Abysmo), houve um projeto que ficou a cozinhar em lume brando no cardápio de sonhos deste coletivo: criar um livro-disco dedicado ao surrealismo português.
“Em 2015, no Festival Silêncio, em Lisboa, fizemos um espetáculo sobre o surrealismo e ficámos com vontade de aprofundar a história destes artistas, desconhecida por muitos”, continua Alexandre Cortez, responsável pela conceptualização do novo trabalho do coletivo, que chegou às livrarias no final de agosto. “Em 2019, começámos a idealizar o livro. Até fizemos alguns espetáculos inspirados no surrealismo, mas depois veio a pandemia. Não era o momento certo para promovermos o trabalho tão valioso dos surrealistas.”
Sete anos depois, o projeto vê finalmente a luz do dia. São mais de 100 páginas, meticulosamente ilustradas pelo “surrealista fora do seu tempo”, João Alves, cujas pinturas a óleo e acrílico acompanham os versos do irrequieto Mário Cesariny, do sempre provocatório Alexandre O’Neill ou do obstinado António José Forte. Nas décadas de 40 e 50 do passado século, os surrealistas lisboetas desafiavam as regras da linguagem e da lógica. Utilizavam metáforas violentas, pediam a “revolução do espírito”, defendiam a escrita simultânea por várias pessoas, sob o efeito de drogas ou do álcool. Era só uma a bandeira que os unia: a ânsia por liberdade.
“Estes poetas eram muito conscientes do seu tempo”, revela Alexandre Cortez, entre risos e um olhar fascinado pela história que conta. “Perante a ditadura salazarista, queriam liberdade – política, social, artística. E tentaram alcançá-la através de um lirismo misturado com revolta.”
Contudo, o músico deixa um alerta: o livro-disco não é um manifesto contra a falta de liberdade provocada pela pandemia ou a guerra na Ucrânia. “Não pensámos no livro a partir das situações-limite dos últimos dois anos. Os surrealistas, por si só, são suficientemente inspiradores.”
Verso meu, verso meu, há alguém mais livre do que eu?
Para dar voz e ritmo aos poemas d’Os Surrealistas, como o amor imaginário d’O Homem Bisado, de Pedro Oom, ou a repressão citadina d’O Poeta de Lisboa, de António José Forte, só foi preciso cumprir um requisito: fazê-lo em quase total liberdade. E o vocábulo “quase” não é empregue por cortesia: à energia desconcertante dos declamadores junta-se um conjunto de restrições, para que o sentido original dos poemas não seja desvirtuado.
“É um equilíbrio difícil”, começa por revelar à VISÃO o jornalista Nuno Miguel Guedes, autor do prefácio do livro e membro da Lisbon Poetry Orchestra desde 2013. “Os poemas fazem-me sempre pensar no contexto atual, mas, antes de tudo, aqueles poemas já existiam. Não posso ignorar os sentimentos e a espontaneidade que inspiraram estes poetas, há mais de 50 anos.”
E é essa espontaneidade que ainda hoje marca o trabalho do coletivo. Para o alinhamento dos textos, não houve nenhuma estrutura prévia a ser cumprida. Depois de mergulharem na Lisboa surrealista – e de verem “abrir-se o teto para cair um garfo no meio da sala” (Chamada Geral, de Mário-Henrique Leiria) e de se confrontarem com “crocodilos bebendo limonada” (Homem Bisado, de Pedro Oom) –, os artistas incluíram todos os poemas que, diz Nuno, “pareciam viajar até nós, que naturalmente encaixavam uns nos outros”. E assim surgiu um roteiro em que a liberdade e o amor são os protagonistas, mas que, garante Nuno Miguel Guedes, não tem uma interpretação fixa: “Queremos colocar as pessoas num território de liberdade, onde cada um pode viajar de forma diferente pela obra.”
Cada leitor-ouvinte (ou ouvinte-leitor, tal é a dicotomia entre escrita e música) pode conjugar a sua viagem a dois tempos: entre as páginas pretas e brancas do livro e as melodias surrealistas que compõem a obra. Para tal, basta ler os QR Codes presentes ao longo do livro – e aceder a mais de uma hora de declamações, recheadas de estrondos, ruídos e silêncios, intercalados com o habitual estilo pop do coletivo. “Nós não queremos que a música seja um fator acessório. Esta obra só faz sentido porque as melodias e os poemas estão em harmonia uns com os outros”, conclui Nuno Miguel Guedes.
A Lisbon Poetry Orchestra continua a percorrer o País com os habituais espetáculos temáticos – agora maioritariamente centrados no novo livro-disco. Neste sábado, dia 17, é no Castelo de São Jorge que dará a conhecer o novo livro-disco à cidade que acolheu a incongruência genial dos surrealistas portugueses, há já quase 80 anos.
Sobre as faixas musicais por compor e as estrofes por escrever, os membros do coletivo não adiantam muito, mas uma coisa nos garantem: continuarão a contar histórias através de versos cada vez mais surpreendentes. Contas feitas, é este o espírito de uma orquestra de poetas.
Lisbon Poetry Orchestra: Os Surrealistas > Castelo de São Jorge, Lisboa > 17 set, sáb 21h30 > grátis > Levantamento de bilhete na bilheteira do Castelo de São Jorge, no próprio dia, a partir das 15h (limite de 2 por pessoa)