Nos primeiros minutos do espetáculo, o público fica hipnotizado pala repetição dos rituais de limpeza conduzidos por Sara Barros Leitão, naquele pequeno quadrado de linóleo rosa que representa o palco. Aos poucos, detergentes, baldes e esfregonas transformam-se em adereços de cena e ganham outros significados. É quando se ouve o ronco da máquina de lavar roupa que começa a narrativa de Monólogo de uma Mulher chamada Maria com a sua Patroa, que dura precisamente 1h40, o tempo de um ciclo de lavagem. Conta-se a história das empregadas domésticas portuguesas, mulheres de quem invariavelmente se dizia que eram “quase como se fossem da família”, a atravessar os tempos e a assinalar os momentos mais marcantes do seu poder de organização, reivindicação e mudança.
Durante muito tempo, Sara Barros Leitão observou estas mulheres, nos autocarros ou nas casas de familiares, e pensou na invisibilidade a que são conduzidas. Quando leu um artigo sobre o primeiro congresso do Sindicato do Serviço Doméstico, em 1979, que juntou cerca de nove mil mulheres, percebeu que tinha de agarrar no tema. Estava definido o ponto de partida para o primeiro espetáculo de Cassandra, a estrutura artística que fundou em 2020, a resgatar a figura mitológica silenciada.
A urgência em saber mais sobre o percurso das empregadas domésticas em Portugal, levou-a a quatro meses de pesquisas, em que mergulhou de forma intensiva, juntamente com uma socióloga, no arquivo do sindicato (sobretudo, na correspondência, com relatos dramáticos), falou com a fundadora, Conceição Ramos, entrevistou várias mulheres, leu livros, artigos e teses.
Ao longo do espetáculo, são revelados os episódios mais importantes desta luta. “Tento contribuir para a criação de uma narrativa alternativa. Quando se fala do trabalho das mulheres, parece que só começaram na revolução industrial – como se não o fizessem já de forma não remunerada, nas suas casas”, diz a criadora. “Vou até 1867, quando há a primeira lei que separa as empregadas domésticas das pessoas escravizadas. No fim do espetáculo recupero essa data para explicar que a primeira vez que se faz uma lei em Portugal, depois dessa, é em 1980. Ou seja, já se tinha feito o 25 de Abril e a lei que protegia as empregadas domésticas era uma lei feita antes do fim da escravatura, o que diz muito sobre a forma como se veem estas mulheres. Esta lei foi revista em 1992 e continua igual até hoje, à margem da lei geral do trabalho, o que significa que todas as revisões ao Código do Trabalho não abrangem estas mulheres”, conta.

O monólogo fala da primeira mobilização das empregadas domésticas em Portugal, em 1921, nas ruas de Lisboa, em protesto por um regulamento vexatório do governador civil, do êxodo de milhares de crianças e jovens raparigas do interior do País para as grandes cidades para trabalharem como criadas de servir, da obra de Santa Zita, que as acolhia – financiada pelas patroas cristãs, onde eram educadas para a obediência – , da formação do sindicato e da criação de uma cooperativa, que chega a ocupar prédios onde funcionam serviços de lavandaria, refeitórios e creches comunitárias. Termina na atualidade e na fragilidade da lei do serviço doméstico ainda em vigor. Informações cruzadas com depoimentos pungentes e denúncias de maus-tratos, injustiças, isolamento. Na cenografia minimalista, assinada por Nuno Carinhas, a mensagem ganha outro impacto, com a enorme cortina de retalhos a assemelhar-se a um muro das lamentações.
A Organização Internacional do Trabalho fez um inquérito em que perguntou às empregadas domésticas se viam mais vantagens ou desvantagens em serem consideradas da família. E a grande maioria via mais desvantagens
Sara Barros leitão
“A mudança é coisa que leva tempo”, ouve-se na peça. O reconhecimento dos seus direitos laborais é muitas vezes, acredita Sara, travado pela linguagem dos afetos. “O facto de trabalharem na nossa casa, mexerem nas nossas coisas e terem acesso ao de mais íntimo que temos não deve sobrepor-se a uma relação laboral. A Organização Internacional do Trabalho fez um inquérito em que perguntou às empregadas domésticas se viam mais vantagens ou desvantagens em serem consideradas da família. E a grande maioria via mais desvantagens”, conta.
Portugal é o país da Europa que mais contrata empregadas domésticas […]. Os estudos apontam como principal razão o facto de elas colmatarem a ausência de uma série de respostas públicas de cuidados, nomeadamente uma rede de creches públicas ou de cuidados de idosos
sara bArros leitão
A criadora lança outros dados interessantes para reflexão. “Portugal é o país da Europa que mais contrata empregadas domésticas e não o fazemos porque somos particularmente ricos ou com manias burguesas. Os estudos apontam como principal razão o facto de elas colmatarem a ausência de uma série de respostas públicas de cuidados, nomeadamente uma rede de creches públicas ou de cuidados de idosos. Se o Estado Social cumprisse a sua função, não precisaríamos de empregadas domésticas”, sublinha.
A urgência em denunciar esta situação não transforma o espetáculo, contudo, num manifesto político. “Conseguimos uma coisa incrível, de juntar registos teatrais completamente distintos: clown, comédia, melodrama, farsa, cenas realistas, documentais, momentos mais conferencistas… explora várias estéticas e isso agrada-me muito”, aponta Sara Barros Leitão. Com Cassandra, quer continuar a dar voz à as mulheres silenciadas, mas sem estar fechada numa agenda feminista. “Seria redutor dizer que tudo o que vamos fazer parte deste ponto de vista. Só quero que os projetos sejam transformadores, agora o que isso significa…”
Monólogo de uma Mulher chamada Maria com a sua Patroa > Centro Cultural de Belém > Pç. do Império, Lisboa > T. 21 361 2627 > 4-7 nov, qui-sáb 21h, dom 16h > €15 > outras datas