É um dos mais míticos e marginais atores americanos. Harry Dean Stanton percorreu quase um século de cinema nos Estados Unidos da América, maioritariamente em papéis secundários. Também foi um músico country com timbre e sensibilidade notáveis. Morreu em setembro passado e deixou-nos um último e testamentário filme. Lucky é uma obra de culto feita à medida de um ator de culto.
Apesar de ter feito papéis notáveis e marcantes em filmes de David Lynch (Coração Selvagem), Wim Wenders (Paris-Texas) ou Ridley Scott (Allien), raramente ganhou tal protagonismo. Em Lucky, Stanton faz o papel de uma vida. Um ator de 90 anos a interpretar uma personagem de 90 anos. Um filme passado numa remota cidade da América. Encontramos um homem carismático, que vive sozinho mas não se sente só, ateu convicto, fumador inveterado, que insiste em não morrer. Faz ginástica para o corpo e ginástica para a mente. Segue as suas rotinas: o café, a mercearia, os programas de televisão, o bar. Levanta problemas existenciais, enfrenta a morte como quem olha para o vazio e ri-se-lhe na cara. Descobre que realismo é uma coisa: a capacidade de aceitarmos as coisas como elas são. E ele aceita-as. Uma atuação deslumbrante, em que se homenageia a si próprio. Fazemos-lhe uma vénia.
Ironicamente, o derradeiro filme de Harry Dean Stanton é o primeiro realizado pelo ator John Coat Lynch. Algo tão irónico como a vida. Apesar de ser um filme com características peculiares, encontra-se aqui o sóbrio talento de um realizador estreante mas com vasta experiência no cinema. Descobrem-se pontos em comum com David Lynch, não só porque o próprio faz um pequeno papel mas porque há um encontro de referências, situado algures entre Straight Story e Blue Velvet.
Lucky > de John Coat Lynch, com Harry Dean Stanton, David Lynch, Ron Livingston, Ed Begley Jr. > 88 min