
Não é impunemente que se filma nos Açores. As ilhas recusam o papel de mero cenário, interferem na ação, extrapolam narrativas, clamam por protagonismo. Em Adeus Pai, Luís Filipe Rocha havia espelhado o lado azul do arquipélago, agora emaranha-se no cinzento e negro, num filme vulcânico, com traços de policial, mas que pretende ir além das fronteiras de género. É a ilha do Pico, em particular, a sua geografia acidentada, convite a mistérios e esconderijos. Mas também o Faial, mesmo ali à sua frente, porto de marinheiro e viajantes, com o cosmopolitismo histórico comum aos pontos de passagem, com o Peter Café Sport a servir de anfitrião de quem por lá passa.
Luís Filipe Rocha convoca assim personagens soturnas, que escondem no rosto marcas da vida, de um passado que as persegue e que inevitavelmente traz consequências à narrativa. Uma história aparentada das tragédias gregas, de cobiça, traição e vingança, em que o paraíso se mancha de negro, à medida em que a trama se desenvolve e os mistérios se desvendam. Há um paradoxo nos Açores de Cinzento e Negro. Por um lado, as ilhas representam a via de escape para David, um criminoso de circunstância, que julga poder dissolver-se na paisagem enquanto eventualmente espera por uma passagem segura para as Américas. Por outro, por definição, são pequenos pedaços de terra cercados pelo mar, o que lhe incute um permanente sentido claustrofóbico, de quem se fecha entre as suas gentes e os seus segredos, mesmo quando se trata de uma ilha tradicionalmente aberta como o Faial. Essa dimensão curta e fechada, à beira da imensidão do mundo, acaba mesmo por ser fatal para o desfecho do filme, que mais do que uma questão de ganância se transforma numa questão passional.
Curiosamente, desviando-se dos padrões do género, Luís Filipe Rocha escolhe atores/personagens da casa dos 40 anos, rompendo com os clichés da sensualidade. O filme não disfarça algumas carências nesse ponto, sobretudo na pouco convincente relação entre David e Marina. Boas atuações, sobretudo, de Miguel Borges que, mais uma vez, se mostra como um ator versátil e profundo, sem nunca perder a identidade.
Cinzento e Negro > de Luís Filipe Rocha, com Miguel Borges, Filipe Duarte, Joana Bárcia e Mónica Calle > 126 min