Passaram 72 anos desde que o 4 de Julho, Dia da Independência dos Estados Unidos da América, era celebrado com fogo de artifício no meio da lezíria ribatejana. Nessa data, na grande Herdade de Nossa Senhora da Glória, que somava 184 hectares, as portas das casas tipicamente portuguesas, mas com relvados tratados por jardineiros, abriam-se ao convívio entre americanos e portugueses.
O mesmo acontecia diariamente ao trabalharem na RARET, o centro de retransmissão da nova-iorquina Radio Free Europe – daí o “RA” de rádio e “RET” de retransmissão – que emitia mensagens dos refugiados do Bloco de Leste que chegavam a Munique, na altura integrada na Alemanha Ocidental.
Portugal estava à distância certa para as antenas reenviarem o sinal para a União Soviética, Bulgária, Checoslováquia, Alemanha Oriental, Hungria, Polónia e Roménia. Só os russos tentavam bloquear a retransmissão, mas os engenheiros, técnicos e tradutores que trabalhavam a cerca de 80 quilómetros de Lisboa, sabiam que, enquanto a Guerra Fria durasse, teriam emprego garantido na Glória do Ribatejo.
Na cabeça de Pedro Lopes, 45 anos, esta história sempre se chamou Glória. À medida que colecionava detalhes sobre as vidas de quem laborou e morou na Glória do Ribatejo, uma cidade americana em terra de “vermelhos”, ele fortalecia os laços de uma história ainda desconhecida de muitos portugueses.
Nos anos 1980, as férias passadas na região ribatejana e as histórias contadas pelo avô materno que tinha trabalhado na Emissora Nacional, foram o início da pesquisa de Pedro Lopes, autor de Glória, a primeira série de ficção portuguesa para a Netflix, que tem a RTP como co-produtora minoritária. A série já estreou-se em novembro de 2021 na plataforma. Agora chega a vez de quem não tem Netflix ou até de quem não viu a série na altura.
A história de Glória recua a 1968, época ditatorial do Estado Novo, com Oliveira Salazar como presidente do Conselho de Ministros e uma PIDE muito reativa, enquanto a Cortina de Ferro dividia a Europa em duas. Mas a narrativa não é bafienta, garante mistério, cenas de ação e foco num elenco luso e estrangeiro bem equilibrado, prevalecendo a língua portuguesa.
Tendo o argumento escrito a várias mãos, Pedro Lopes sabia que “focar o olhar apenas na cidade americana da RARET não era suficiente para mostrar o contraste com a realidade nacional e de como esta se cruzava com a realidade internacional”. Daí, a abertura do enredo à urbanidade de Lisboa e às suas elites ligadas ao regime, em contraponto com a vida rural e dura de um País salazarento.
Apesar de as personagens de Glória serem ficcionadas, todo o enquadramento histórico é real, e isso é uma mais-valia. “Quisemos fazer uma grande série que seja ficção e entretenimento, mas também recuperar a memória coletiva do País. Insistimos na questão histórica para haver muita precisão, mas é um puzzle de boa ficção, suspense e thriller”, descreve o autor.
Glória fez obras, reconstruiu casas e décors no complexo da RARET, há mais de 20 anos devoluto. Já os interiores, e porque esta produção não tem gravações em estúdio, foram captados no Centro Emissor de Onda Curta, em Pegões, no Montijo, propriedade da RTP. A vila de Glória do Ribatejo foi recriada em Cabrela e em Montemor-o-Novo, e simularam Angola no Campo Militar de Santa Margarida.
Realizada por Tiago Guedes, a série de dez episódios é protagonizada por Miguel Nunes no papel de João Vidal, o engenheiro eletrotécnico nascido no seio de uma família católica e burguesa, recrutado pelo KGB (serviços secretos russos) em África, quando combatia na Guerra Colonial em Angola.
Glória > RTP1 > estreia 21 ago, seg 22h30 > emissão de segunda a sexta às 22h30 > 10 episódios