Ainda nem saímos do aeroporto e o telemóvel já está em modo de câmara para apanhar a jeito a montanha mais alta de Portugal. O dia está lindo e há que aproveitá-lo até ao tutano para encher a pasta das fotografias e matar de inveja quem ficou no Continente.
E depois, quando vamos já no carro, com a realizadora Cristina Ferreira Gomes ao volante, cheia de confiança, conhecedora da ilha como uma nativa, vemos logo uma amostra das vinhas do Pico. Não vale a pena pensar que, lá por se ter ido espreitar a internet, antes do embarque, para percebermos o que nos esperaria, estamos preparados para isto. Não estamos. Afinal, não é a qualquer um que a UNESCO entrega o troféu de Património Mundial da Humanidade.
Seguimos viagem, pé no acelerador. Daqui até ao Lajido da Criação Velha, um sítio protegido, demoramos pouco mais do que 15 minutos de carro, mas até teríamos ido de joelhos, porque chegar a este local do mundo é uma bênção. Ou o que chamar a este lençol de pedra de lava que escorreu há séculos do vulcão que se avista lá no alto e só parou para dar vez ao oceano? Mais. Foi nesse manto de pedra basáltica que, no século XV, quando a ilha foi povoada, alguém se lembrou de cultivar vinha, abrindo pequenos buracos na pedra e indo buscar terra à ilha da frente, leia-se Faial. Estranhos desígnios, esses, que, miraculosamente, se perpetuaram até hoje.

A comissão nacional da UNESCO serve-se de palavras mais caras para descrever aquilo que aqui se avista e, por isso, roubamo-las: “Este bem consiste numa espantosa rede de longos muros de pedra, espaçados entre si, que correm paralelos à costa e penetram em direção ao interior da ilha. Estes muros foram erguidos para proteger do vento e da água do mar as videiras, que são plantadas em milhares de pequenos recintos retangulares, colados uns aos outros.”
Foi mais ou menos isso que nos disse a realizadora do documentário sobre os vinhos do Pico, que se estreará brevemente na RTP1 (ver caixa Contar a História). A sociedade picoense já teve a sorte de ver o filme dedicado a esta arte, numa antestreia a que também fomos, no auditório da Biblioteca Municipal da Madalena, numa noite chuvosa e de ventos fortes, condições meteorológicas apenas atenuadas pela prova de 15 referências vínicas que se seguiu ao acontecimento cultural.
É o marketing, senhores
Antes do happening, andaríamos nós pelos pontos fulcrais desta atividade tão antiga. Só não fomos mal chegámos para o Museu do Vinho porque o Sol não desapareceu e tornou-se indispensável “ir lá acima”, tão alto quanto as quatro rodas nos permitiram, para nos deslumbrarmos com a vista. E com os caminheiros que se aventuram montanha acima, montanha abaixo (são pelo menos sete horas, ida e volta).
Pelo caminho, haveríamos de parar para os típicos retratos com as vacas a pastar à solta, as tais que são felizes, na ótica de Cavaco Silva. Em 2011, foram estas as palavras precisas do então Presidente da República, durante uma visita à Graciosa: “Ontem, eu reparava no sorriso das vacas, estavam satisfeitíssimas olhando para o pasto que começava a ficar verdejante.” Adiante, que isso já faz parte da História.
É Manuel Costa, diretor do museu, quem nos recebe, por entre uma floresta de dragoeiros, quando finalmente retomamos o programa estipulado. Com vista para uma pequena vinha – que dá apenas duas toneladas de uva vendidas à Adega Cooperativa – e com o mar lá ao fundo (aqui há sempre mar ao fundo), bebemos das palavras do enfático conhecedor da História do Pico, a segunda maior ilha dos Açores, com apenas 14 mil habitantes. “O nosso vinho conta histórias dentro das garrafas.” No entanto, Manuel Costa sabe bem que isso não basta e nem basta um bom produto. Sem marketing, ninguém falaria hoje, como se fala, nos vinhos do Pico. Há quase 20 anos, altura da classificação pela UNESCO, que a História está a ser reeditada, em pleno século XXI. “Tem vindo imenso dinheiro”, revela.
As castas são só três
“É um milagre. Como tão pouca gente consegue transformar a ilha, que não era arável, em vinho? Temos de ser um povo especial…” Um povo especial que primeiro foi explorado, enquanto mão de obra barata, pela burguesia e clero do Faial – a ilha omnipresente, à distância de um olhar ou de meia hora de ferry.
Quando, em 1850, a enorme praga da filoxera e do oídio dá cabo das vinhas que tinham sido plantadas em lava, os habitantes da ilha emigram em massa para os EUA (nessa altura, existiam 150 produtores de vinho). Os terrenos, em que antes se abriram fendas na rocha-mãe, tornam-se apenas abandono. Acabam, então, as castas autóctones, como o Verdelho dos Açores, o Arinto e o Terrantez, entra a Isabel, pela mão dos emigrantes, a chamada uva norte-americana que há de dar origem ao vinho de cheiro. Esta bebida não tem qualidade nem desperta qualquer interesse entre os enólogos, mas vende-se em todas as tascas (só nos Açores) e consome-se em todas as casas.

Pela nossa parte, dispensamos essas garrafas, cujo vinho também se chama “morangueiro”. Preferimos, sem dúvida, os brancos frutados, salinos, cheios de mineralidade, como aqueles que provámos na Azores Wine Company. A empresa nasceu pela mão de António Maçanita que apostou, em 2000, na requalificação destes vinhos, dando-lhes mundo – marketing, lá está. “A vinda de Maçanita foi crucial, porque desafiou a ilha e o vinho. A sua adega é magnífica, podia estar em qualquer parte do mundo”, assegura Manuel Mota, referindo-se ao edifício moderno com uma vista deslumbrante, a piscar o olho a São Jorge, que se dedica ao enoturismo (neste verão abriram também cinco apartamentos).

O ano de 2021 foi fraco para a uva, dizem-nos. A culpa, ninguém duvida, não foi da pandemia, como é costume, mas da tempestade Lola que dizimou dois terços da vinha, em abril. Quando estes fenómenos acontecem, de pouco servem os muros de pedra laça, erigidos à mão para proteger o cultivo dos agrestes ventos marítimos. Aliás, nos vinhos do Pico todo o processo é manual – assim o obriga a arquitetura dos currais.
A casta Arinto dos Açores é a que mais se vinifica e a que dá origem a vinhos que vão buscar a acidez da maçã verde. A Terrantez é mais difícil de manter viçosa e, por isso, esteve quase em extinção (os vinhos são mais florais) e a Verdelho (também há no Continente, mas não tem nada que ver com esta) vai buscar o aroma aos ananaseiros que salpicam as vinhas, assim como algumas figueiras.
Da pedra se fez vinho
Os tintos do Pico não fazem História – são até mais baratos do que os brancos. Por isso, se nos perdoarem, não vamos gastar espaço a falar deles. Aliás, no almoço que nos serviram numa adega típica, cheia de pipas de madeira, onde ainda hoje se reúnem os amigos da família Faria, durante o tempo da vindima, para umas patuscadas, só bebemos brancos das três castas da região. Estes Curral Atlantis foram mesmo bem com a morcela e a linguiça, e com o polvo estufado e o atum frito.

“Em nenhum outro sítio se encontra este terreno, em que da pedra se faz vinho”, nota Paulo Laureano, enólogo da casa, fascinado com esta forma de produzir. “Só temos de deixar sair o melhor do clima, do solo e da casta. Adicionamos alguma tecnologia, mas sem esconder o carácter.” Outra das características destes brancos é sua longevidade. “Os vinhos do Pico precisam de garrafa, de tempo para ganharem equilíbrio. Temos alguns do ano 2000 que ainda se bebem”, assegura o especialista.

Não admira nada que os brancos sejam caros (andam na casa dos 20 euros, com variações para cima e para baixo). Além do facto de estarmos numa ilha, acrescem a manualidade que o processo exige e a diminuta quantidade retirada por hectare. “Quando conseguimos colher duas toneladas de uva é uma festa”, resume Paulo Laureano. O enólogo também já tem marca própria, desde que explora, com uns amigos, cinco hectares de vinha. No Pico, o terreno está muito retalhado e há uma mão-cheia destes pequenos produtores.
Outro dos casos é o do casal Luísa Terra e José Eduardo que abriu o elegante turismo Pocinho Bay, há 17 anos, mesmo em frente a uma apetitosa piscina natural. Dos seus três hectares, retira cerca de 12 toneladas de uva para engarrafar, sempre com uma ligação à arte. Algumas das garrafas estagiaram no fundo do mar, a 18 metros de profundidade, para uma experiência que parece ter resultado bem.

Outros agricultores não se metem na produção. Preferem entregar a colheita de uvas à Cooperativa Vitivinícola da Ilha do Pico, que existe desde 1949. Neste ano, diz-nos Losménio Goulart, o presidente, receberam 240 toneladas de cerca de 240 sócios, o que representa 60% do que se planta na ilha. “A cooperativa é uma força motriz desta indústria, que estipula até o preço das uvas no mercado”, conta. As mais caras do País, reforçamos: a Terrantez, por exemplo, chega a ser vendida a quatro euros o quilo.
A adega toma conta de 15 vinhos diferentes, todos pensados ao pormenor, da garrafa ao rótulo. Um deles, o Gruta das Torres, estagia no interior da terra, a 17 metros de profundidade, tirando partido das condições especiais. Esse néctar é um dos que aqui provamos, acompanhado das explicações técnicas do enólogo Bernardo Cabral. Já para não falar do acompanhamento delicioso de queijo de vaca e de bolo de milho que casam sempre tão bem com estes vinhos inigualáveis. No Pico, até os licorosos têm história e um piquinho a mar (ver caixa Licorosos salgados).
Vinhos provados e bastante apreciados, documentário visto no grande ecrã. Estamos agora prontos para regressar ao Continente. Desta vez, não tiramos fotos no aeroporto, antes de entrar no avião. O Sol não brilha como na chegada. Na realidade, o dia está tão triste como nós estamos por termos deixado a ilha. Vale-nos ter quase excesso de peso na bagagem de porão, por a mala estar carregadinha de souvenirs, leia-se queijos, pães da ilha e vinho, claro.
LICOROSOS SALGADOS: Os vinhos doces também se aproveitam da salinidade do terroir
Chegamos à adega de Fortunato Garcia e reparamos logo no pratinho com pedaços de chocolate preto e algumas nozes, mas só depois de provarmos o seu exclusivo Czar é que percebemos a intenção de ele o conjugar com estes alimentos – tem toque a mel e a frutos secos oleosos e, no final, fica um salgadinho na boca. Este vinho poderia estar na categoria dos licorosos, mas, do ponto de vista legal, isso não acontece porque não leva aguardente. As leveduras é que se transformam naturalmente até atingirem cerca de 20% de teor alcoólico e não há açúcares adicionados. “Por cá, chamamos vinho passado, porque é feito com uvas deixadas mais algum tempo, quase passas”, explica Fortunato, adiantando que apenas usa a casta Verdelho para esta produção.
A marca Curral Atlantis também aposta nesta espécie de licoroso, a que chama Pico Nectar, deixando-o evoluir no mínimo 10 anos na garrafa. “Estes vinhos são muito ricos do ponto de vista aromático, e a sua enorme acidez dá-lhes capacidade de evolução. Temos um estatuto diferenciador, somos os únicos a fazê-los e deveríamos ter uma designação específica, como o vinho da Madeira ou o do Porto”, esclarece o enólogo Paulo Laureano.
Estes vinhos de sabor inigualável tanto harmonizam com entradas como com sobremesas. E um bom apreciador não precisará de acompanhá-los com nada. Como nota Fortunato Garcia, que agora se dedica sobretudo a edições especiais do seu Czar, que podem chegar aos mil euros, “são vinhos chatos, porque está sempre a apetecer mais um copo”. Não podíamos estar mais de acordo.
CONTAR A HISTÓRIA: Em breve, na RTP1, haverá uma série para descobrir os vinhos mais originais do País
Um vinho nunca é apenas um vinho – e alguns são mesmo especiais. Sobre esses, Cristina Ferreira Gomes quis saber tudo, a fim de realizar cinco documentários para a RTP1, a estrearem-se em breve. Vinhos com História é o título desta série de episódios de uma hora cada, em que se explicará o que está por detrás da produção no Pico, nos Açores, o que se passa dentro da Talha, no Alentejo, o que caracteriza os verdes tintos do Minho, o que são os cistercienses da zona de Alcobaça e de Ourém ou como se plantam vinhas na areia para se chegar aos néctares de Colares, perto de Sintra. E ainda regista, a partir da atualidade, estes passados feitos de resistência.
Um vinho nunca é apenas um vinho, repete-se. Até porque no seu terroir podem esconder-se muitas histórias que fazem parte da História global, como o crash da bolsa de Nova Iorque ou a praga da filoxera. A produção dos documentários, a cargo da Mares do Sul, foi longa, porque, em todos os casos, quis-se acompanhar o ciclo da produção do vinho e a passagem das estações num ano agrícola, desde o momento da plantação da vinha até à adega.
A autora e realizadora conta-nos quais foram as suas intenções finais: “Mais do que uma série focada apenas no passado histórico, os cinco documentários apresentam-se como um modo de pensar a resistência destes vinhos sob um olhar contemporâneo. Como se os vinhos fossem um organismo vivo, sobrevivente e surpreendentemente vanguardista nos seus modos de cultivo e de estar.”