Já passaram quase quatro horas desde que Paulo Silva e os amigos começaram a correr pelos trilhos da serra da Lousã, replicando o trajeto dos Trilhos dos Abutres, uma das mais concorridas provas de trail running em Portugal, que todos os anos atrai cerca de duas mil pessoas à vila de Miranda do Corvo. Nos últimos anos, as inscrições online para a prova, uma das mais duras do calendário nacional, esgotam-se em poucos minutos, o que obrigou a organização a optar por um sistema de sorteio, a exemplo das suas maiores congéneres internacionais, como o Ultra Trail do Monte Branco, nos Alpes. O estatuto dos Trilhos dos Abutres cresceu de tal forma que, este ano, recebeu o mundial desta modalidade que, de forma simples, pode ser descrita como uma corrida de montanha, pelos caminhos outrora sulcados por pastores e outros habitantes destas aldeias serranas. Durante um fim de semana, no início de junho, a serra da Lousã recebeu dezenas de seleções participantes e de adeptos, muitos deles vindos do estrangeiro, esgotando hotéis, restaurantes e trazendo à região, segundo a organização, “um impacto económico superior a um milhão de euros”.
“Foi um momento histórico, inimaginável. Vivemos um sonho e temos de saber aproveitá-lo”, afirmou à VISÃO Se7e Tiago Araújo, o presidente da Associação Abutríca, que desde 2011 organiza os Trilhos dos Abutres, referindo-se à organização do Campeonato do Mundo que, pela segunda vez em apenas quatro anos, se realizou em território nacional – em 2016, foi no Parque Nacional da Peneda-Gerês, agora na serra da Lousã.
Paulo, 44 anos, esteve lá e está agora de regresso, como habitualmente faz, “cerca de uma vez por mês”, com um grupo de amigos do Porto, de onde é natural. “Vimos para correr, mas especialmente para usufruirmos desta Natureza e no final há sempre tempo para repormos as calorias perdidas à volta de uma caçoila de chanfana”, conta, com humor, enquanto descansa por uns momentos na aldeia de Gondramaz, uma das mais bem preservadas desta zona da serra, no coração do concelho de Miranda do Corvo, onde as habitações foram, na sua maioria, recuperadas e são hoje moradias de férias ou unidades de alojamento local. Alguns habitantes locais continuam, no entanto, a dar vida a estas velhas ruelas. É o caso de Manuel e de Celeste Rodrigues, de o casal que mantém aberta a Loijinha do Bezitante, como se lê, assim mesmo, numa tosca placa de xisto no principal largo da pequena aldeia. Trata-se de uma pequena cave, numa casa de xisto tradicional, onde dão a provar licores, aguardentes, bolos e mel de produção própria. A loja serve também de armazém às esculturas de aspeto medieval, esculpidas num único bloco de pedra pelas mãos de Manuel, que aprendeu a arte com um outro artesão da terra, entretanto já falecido.
Outrora quase intransponível, a serra é hoje o maior cartão de visita do concelho de Miranda do Corvo. Por estas serranias, onde no início do século XIX penaram os invasores franceses, perdem-se hoje praticantes de trail running ou de BTT – e cada vez mais visitantes, em busca das velhas aldeias de xisto mas também das lojas, dos restaurantes e dos hotéis que, nos últimos anos, aqui têm reinventado a memória dos velhos tempos.
A vila de Miranda do Corvo fica situada num vale e o que de imediato chama a atenção a quem aqui chega é a imponência das serranias circundantes. Esta imensidão de penedos ganha ainda maior dimensão quando se começa a subir serra acima, pelas antigas estradas de terra batida, cada vez mais concorridas. Existem diversos percursos marcados exclusivamente para estas modalidades, e são várias as provas que aqui têm lugar. Foi precisamente para dar resposta a esta nova procura que, em 2015, foi inaugurado o primeiro Centro de Estágio de Trail Running em Portugal, com dormitório, balneários, estação de serviço para bicicletas e ginásio. À sua volta existem três circuitos de trail, de 10, 25 e 50 quilómetros e 14 percursos de BTT, num total de cerca de 230 quilómetros, que permitem percorrer a quase totalidade do concelho. A pernoita fica por cerca de 10 euros por dia, mas os restantes equipamentos estão à disposição de todos, mesmo daqueles que não durmam na casa – o uso dos balneários custa 2 euros e o ginásio é gratuito, das 9h às 17 horas. Fica numa antiga casa senhorial, na freguesia de Vila Nova, um pequeno aglomerado rural, conhecido como “o miradouro de Miranda”, por se encontrar a cerca de 400 metros de altitude, com vista panorâmica sobre a sede do concelho, mas também por ter sido um dos primeiros locais onde Miguel Torga trabalhou como médico. “É uma aposta num nicho de mercado que é cada vez mais abrangente em termos de público; temos grupos de amigos e famílias inteiras que vêm regularmente para a serra: correr, pedalar ou caminhar”, explica Rui Godinho, o vereador responsável pelo pelouro do Turismo no município de Miranda do Corvo. À medida que se sobe, a serra parece engolir a estrada e as casas, num mar de verde a perder de vista. À volta do Parque de Lazer e de Merendas das Mestrinhas, onde costumam avistar-se esquivos esquilos a saltitar entre as árvores, desenvolve-se uma das maiores manchas de pinheiro-bravo, habitada por veados, também eles bastante comuns por estas paragens. Um pouco mais acima, no Alto da Mestrinha, a 900 metros de altitude, fica o ponto mais elevado do concelho, de onde, nos dias limpos, se avista o horizonte até ao mar da Figueira da Foz.
Tradições renovadas
A cerca de 10 quilómetros de Miranda do Corvo, a Lousã é outra das principais portas de entrada para a serra que leva o nome desta vila. Mas, antes de se partir em busca das aldeias de xisto com nomes como Cerdeira, Candal ou Talasnal, impõe-se uma paragem, para retemperar forças, na Taberna Burguesa, onde os sabores da região são recriados com um toque contemporâneo. O pão, “de receita própria”, como sublinha a proprietária, Carina Rodrigues, 29 anos, “é confecionado numa padaria vizinha” e a carne, oriunda de produtores da região, “é comprada no talho da vila”. “A principal aposta passa por petiscos, para partilhar”, como o pica-pau, os ovos mexidos com alheira, os cogumelos à taberna, os queijos e os enchidos, mas também pelos ingredientes mais típicos da serra: mel, castanhas e carne de veado e javali, em destaque na iniciativa Sabores de Outono, que acontece de 18 a 27 de outubro. Há ainda muitas opções de hambúrgueres, incluindo um de alheira, grelos e queijo da serra da Estrela.
Uma das mais isoladas da serra, a aldeia da Cerdeira parece ter parado no tempo, com o seu casario em xisto espalhado pela encosta. Os edifícios foram implantados sobre a rocha, deixando as escassas áreas mais planas para a agricultura, que os antigos habitantes dispuseram em socalcos, protegendo assim a terra das enxurradas. Já quase não há agricultura, mas o cenário mantém toda a sua magia, servindo agora para impressionar os visitantes que arregalam os olhos com esta obra-prima da engenharia popular. Não é difícil imaginar a dureza das vidas de outrora, num ciclo que teve o seu fim na década de 70 do século passado, quando uma discussão sobre a partilha de água acabou em tragédia, numa história imortalizada em 1992, no filme O Fim do Mundo, de João Mário Grilo. Para a aldeia, o fim do mundo chegou com o golpe de sacho com que Augusto Constantino encerrou, em definitivo, a questão. Após cumprir uma longa pena de prisão, regressou a casa para, até ao final da vida, ensinar e partilhar os seus conhecimentos com os novos habitantes, que então começavam a chegar à aldeia, vindos de várias partes do mundo. Uma das primeiras foi a alemã Kerstin Thomas, que tem na Cerdeira um ateliê de artesanato contemporâneo, onde cria imaginativas peças e esculturas em madeira. Foi ela uma das responsáveis pelo renascimento da aldeia, através da arte e da criatividade. É também ela a organizadora da exposição Elementos à Solta, que há 14 anos reúne obras de diversos artistas internacionais pelos campos circundantes.
Uma das melhores maneiras de conhecer a zona, já se percebeu, é a pé, pelos percursos pedestres que devolveram a vida aos antigos trilhos serranos, usados durante séculos pelos habitantes. A cerca de uma hora de caminhada da Cerdeira, fica a vizinha aldeia do Candal, onde é obrigatória uma visita à Loja do Xisto, gerida por um grupo de artesãos locais, onde podem ser descobertas peças de artesanato tradicional e contemporâneo, além de diversas iguarias serranas, como licores, aguardentes, enchidos e mel. Um dos percursos pedestres mais bonitos é o que parte junto ao Castelo da Lousã e percorre as aldeias de Casal Novo e Talasnal. Lá em baixo, no vale, a ribeira de São João desagua numa praia fluvial, encimada pela Ermida de Nossa Senhora da Piedade. O ponto alto é, mesmo, a aldeia do Talasnal que, pela localização, a dimensão e a disposição do bem preservado conjunto urbano, se tornou um dos símbolos das aldeias de xisto da serra da Lousã. Pelo caminho, e quando menos se espera, é normal dar de caras com veados, corças ou javalis. E viva a Natureza!

Uma loja como antigamente
Fica no lugar de Pereira, a Loja do Senhor Falcão, a cerca de um par de quilómetros do centro de Miranda do Corvo. Abre apenas ao fim de semana (à sexta, das 22h às 2h, e a partir das 15h ao sábado), mas vale a pena esperar pela hora certa, porque afinal não é todos os dias que se entra numa mercearia com mais de um século de existência. Foi inaugurada, em 1878, por Lourenço Falcão e sempre vendeu de tudo um pouco, nunca saindo das mãos da família. Hoje é Filomena Falcão, a bisneta do fundador, quem está responsável pela centenária casa e foi ela que, desde 2008, a transformou num espaço de memória viva, embora não se limite a ser um mero museu, muito pelo contrário. É certo que mantém o mobiliário original, mas tudo o resto está à venda, tal como nos velhos tempos: de brinquedos tradicionais em latão e madeira a peças da Fábrica Bordallo Pinheiro. Ao fundo, uma porta ao estilo do Velho Oeste dá acesso à taberna, igualmente contemporânea da mercearia e também ela intacta. Ali, há noites de fado, tertúlias sobre viagens, lançamentos de livros e sessões de leitura. Ou então as pessoas simplesmente aparecem, para conversar e beber um copo de vinho, na companhia de uma tábua de queijos, presunto, salpicão… “É um lugar intimista, que convida a ficar à conversa”, diz Filomena Falcão que, com este projeto, “quis mostrar às novas gerações como era uma loja do século XIX”. No piso superior do centenário edifício, funciona, há alguns meses, um alojamento local, na antiga habitação onde em tempos viveu o por aqui célebre senhor Falcão. Loja do Senhor Falcão > R. José Falcão, 105, Pereira, Miranda do Corvo > T. 91 416 3323

Hotel Palácio da Lousã
MORADAS
DORMIR
Hotel Parque Biológico da Lousã
Situado no sopé da serra, na margem do rio Dueça, conta com 40 habitações, entre as quais três suítes, todas elas dedicadas a uma figura divina da mitologia clássica. Parque Biológico da Serra da Lousã, Miranda do Corvo > T. 239 095 054 > a partir de €75
Palácio da Lousã Boutique Hotel
Inserido num edifício brasonado do século XVIII, que pertenceu à viscondessa do Espinhal, possui 46 quartos distribuídos por duas alas: 23 no palácio e outros tantos num edifício de linhas mais contemporâneas. Faz parte da rede de bikehotels das Aldeias do Xisto, dispondo por isso de diversas valências para ciclistas. R. Viscondessa do Espinhal, Lousã > T. 239 990 800 > a partir de €64
Quinta do Vale Escuro
R. Vale Escuro, 14, Foz de Arouce, Lousã > T. 239 992 059 > a partir de €55
Mountain Whispers
Lg. do Leão, Gondramaz, Miranda do Corvo > T. 239 532 055 > a partir de €65
COMER
Museu da Chanfana
O restaurante celebra um dos grandes patrimónios desta região: a chanfana. O mais típico dos pratos serranos surge aqui na companhia de outros, já caídos em desuso, como os negalhos ou a sopa de casamento. Parque Biológico da Serra da Lousã, Miranda do Corvo > T. 239 538 444 > seg-dom 12h30-15h, 19h-23h
O Burgo
Aberto há 30 anos, é uma verdadeira instituição. Fica junto ao Santuário da Senhora da Piedade, a cerca de 3 quilómetros da Lousã, e aí podem ser saboreados alguns dos mais típicos pratos da gastronomia serrana, como o cozido do Talasnal, com as carnes, os enchidos e os legumes servidos na broa, o cabrito assado no forno, o coelho com molho à bruxa, o veado com tortulhos ou o javali com castanhas. Ermida de N. Sra. da Piedade, Lousã > T. 239 991 162 > ter-sáb 12h30-15h, 19h30-22h, dom 12h30-15h
Ti Lena
Só abre ao fim de semana, pelo que é necessário reservar antecipadamente uma das poucas mesas desta típica casa serrana. A ementa é fixa e os pratos são confecionados apenas por encomenda: cabrito no forno, bacalhau assado ou chanfana. Talasnal, Lousã > T. 93 383 2624 / 91 193 2948 > sáb-dom 12h-22h
Sabores da Aldeia
Candal, Lousã > T. 239 991 393 > sáb-dom 12h30-15h30, 19h30-21h30
Taberna Burguesa
R. do Comércio, 35, Lousã > T. 239 996 311 > seg, qua-dom 12h-15h, 19h-23h, ter 12h-15h
Festival Sabores do Outono
O mel, as castanhas e a carne de veado e javali estão em destaque à mesa dos restaurantes da região. Restaurantes da Lousã > 18-27 out
VER
Parque Biológico da Serra da Lousã
Um parque de vida selvagem dedicado às espécies autóctones nacionais, como lobos, veados, javalis e até ursos- pardos, há muito desaparecidos de Portugal, mas também eles, em tempos, presença habitual nestas serranias. Está integrado numa área com 12 hectares, que inclui uma quinta pedagógica, um labirinto de árvores de fruto, centro hípico, loja de artesanato e diversos núcleos museológicos. Parque de Lazer da Quinta da Paiva, Miranda do Corvo > T. 239 538 444 > abr-15 set: seg-dom 9h30-19h; 16 set-abr: seg-dom 10h-17h30 > €7; 3-15 anos €4,50; menores de 3 anos grátis; bilhete família (2 adultos + 2 crianças) €16,50