
Passeio ribeirinho do Seixal
Diana Tinoco
O verde dos limos é denunciado pela maré baixa, onde os pernilongos e os alfaiates se alimentam com a sua típica graciosidade, e as pequenas embarcações ali atracadas desenham uma paisagem de cores garridas. Do outro lado da baía, classificada como Reserva Ecológica Nacional, a água doce do Tejo mistura-se com as marés do oceano e avista-se o casario da cidade da Amora. Estamos à entrada do Seixal, em frente ao rio, principal recurso natural do concelho, no mesmo ponto de onde partiram as caravelas de Vasco da Gama, primeiro até Belém, depois até ao desconhecido, chegando até à longínqua Índia. Mais de cinco séculos depois, a forte ligação desta zona ao Tejo mantém-se e, movidos pela importância da água, entramos no Núcleo Naval, na Arrentela, integrado no Ecomuseu Municipal do Seixal. Daqui, tal como no tempo dos Descobrimentos, também a VISÃO Se7e partirá em busca de antigos e novos lugares junto a esta zona ribeirinha.

Fernando Dâmaso, 62 anos, o artesão responsável pela construção das réplicas de barcos do Núcleo Naval do Ecomuseu do Seixal
Diana Tinoco
Navegar é preciso
Comece-se, então, a viagem neste núcleo do Ecomuseu, aberto em 1984, que tem como objetivo preservar, investigar e divulgar um imenso património cultural, e onde se podem conhecer diversas réplicas dos barcos que, ao longo dos séculos, navegaram nas águas do Estuário do Tejo. Durante a visita, recorda-se a importância da baía do Seixal, principalmente antes da construção da Ponte 25 de Abril, inaugurada em 1966, e da Ponte Vasco da Gama, de 1998, e também do rio, na altura o único meio de transporte de mercadorias e passageiros.

No Núcleo Naval do Ecomuseu do Seixal, na bancada de trabalho de Fernando Dâmaso, há pincéis, alicates, esquadros, cortes de bétula, entre outros materiais e ferramentas
Diana Tinoco
Os olhos colam-se às vitrinas para ver alguns exemplares em ponto pequeno de catraios e varinos, que levavam todo o tipo de mercadorias, ao lado dos botes da tartaranha e das muletas usadas na pesca. Há pormenores que se descobrem demoradamente, uma e outra vez, até deixarmos esta primeira sala e entrarmos na oficina do senhor Fernando Dâmaso, 62 anos, o artesão responsável por este ofício de minúcia. “Sempre gostei de trabalhos manuais e de construir coisas”, diz recordando os tempos de infância em que criava brinquedos à mão com o que havia. Nos barcos grandes e a sério nunca se aventurou, mas ganhou o gosto por fazer estas versões à escala, mediante os planos de construção cedidos pelo Museu da Marinha. Ainda se lembra de quando ali chegou, há 22 anos, e nada era elétrico: “Era tudo mais demorado e artesanal”. Depois de aprender a ler as escalas, logo nos primeiros meses, fez a sua primeira obra: uma canoa de pesca da Trafaria. Percorremos a sua bancada de trabalho, que se enche de alicates, esquadros, pincéis, cortes de bétula, para fazer os mastros, e contraplacado marítimo, para as restantes peças destas embarcações. Ao mesmo tempo que aprendia este trabalho, foi acumulando conhecimento na arte naval, que agora partilha com os alunos das escolas do concelho e com visitantes de todo o País. Tanto na sua oficina como nos estaleiros, já não se usam apenas o machado, o calafate e a serra braçal de antigamente – as versões elétricas das serras, das lixadeiras e das plainas vieram ajudar a tornar tudo mais rápido. “Ter habilidade, saber ler as escalas e transportar para os materiais esses conhecimentos” são os segredos para se construírem estas réplicas, explica o senhor Fernando, deixando um último conselho: “Tem de se gostar do que se faz, e pelo gosto vem a paciência e o prazer”.

Na Quinta da Fidalga, no interior do edifício branco de linhas direitas, da autoria do arquitetoto Álvaro Siza Vieira, encontra-se a Oficina de Artes Manuel Cargaleiro
Diana Tinoco
A viagem de poucos metros segue à beira-rio, até à entrada da Quinta da Fidalga, antiga Vale do Grou, um dos mais importantes exemplos das quintas agrícolas e de recreio existentes nesta região. Nela destaca-se o Jardim de Buxo, de inspiração renascentista, e o Lago de Maré, com cerca de trinta metros de comprimento e três de profundidade, considerado um elemento raro na arquitetura hidráulica portuguesa. Dentro desta quinta fica também a Oficina de Artes Manuel Cargaleiro, um edifício branco de linhas direitas, projetado pelo arquiteto Álvaro Siza Vieira, que se dedicada à promoção da arte contemporânea. Naturalmente, está ali exposta a obra do mestre Manuel Cargaleiro, que é mostrada e explicada aos visitantes. Entre todas as peças, dá-se especial ênfase aos murais de azulejo que decoram as estações de metro do Colégio Militar, em Lisboa, e do Champs Elysées – Clémenceau, em Paris. Também não se fica indiferente ao painel do edifício do Centro Comercial Apolo 70, concebido originalmente para a Cidade Universitária, a pedido do arquiteto Porfírio Pardal Monteiro. Já de saída, descobre-se o restaurante Tapas ao Rio, aberto há dois meses, onde se servem petiscos portugueses e espanhóis, para partilhar, como gaspacho alentejano, croquetes de presunto e tortilha de espargos. Enquanto os pitéus não chegam à mesa, reparamos na decoração: o balcão feito em madeira de palete, os candeeiros em latão e os quadros com rolhas convivem bem com os rodapés em azulejo originais.

O bar da Mundet Factory
Diana Tinoco
A beleza da cortiça
O passeio continua junto ao Tejo até à Fábrica Mundet, um dos lugares de paragem obrigatória no Seixal. Inaugurada em 1917, chegou a contar com cerca de cinco mil funcionários, a maioria mulheres, e veio a tornar-se um dos maiores empregadores da região. Ana Carapeto, técnica do Ecomuseu Municipal do Seixal, explica-nos que a fábrica produziu cortiça durante 85 anos e que foi considerada a maior empresa do setor no País. “Na altura, tinha já uma forte componente social, com creche, posto médico, refeitório e até um polidesportivo dedicado à prática de diversas modalidades desportivas, das quais se destacou o hóquei”, conta. Desde que foi encerrada, em 1988, e adquirida pela autarquia, oito anos mais tarde, transformou-se num dos núcleos do Ecomuseu.
Vale a pena espreitar a exposição temporária nos edifícios das antigas Caldeiras Babcock Wilcox, no topo da Fábrica Mundet. Aqui, é ainda possível ver-se os grandes fornos, que atingiam mais de 100 graus centígrados, e a máquina de prensa utilizada para fixar quadros de cortiça a placas de metal. Ao lado, estão a bancada de contadores, em que se contavam as folhas de cortiça, e a mesa de escolha, na qual se selecionavam as folhas provenientes da máquina de laminar. Há também exemplares feitos a partir da madeira de sobreiro, como cartões de visita, envelopes, malas de viagem, entre outras peças. Duas curiosidades: os filtros dos cigarros chegaram a ser feitos em cortiça e a película interior da carica, agora em plástico, era também forrada com este material. Ao descer em direção à saída, reparamos que o antigo campo de hóquei está a ser renovado com um novo rinque, mais moderno, “mas que pretende manter a tradição desportiva de outrora”, diz ainda a técnica da autarquia.
Antes de deixar a Mundet, há tempo para passar nos antigos refeitórios da fábrica, transformados num bar e num restaurante com grandes janelas viradas para a baía do Seixal. Na primeira sala, chamam a atenção o balcão feito com o tapete rolante por onde passava a cortiça e uma instalação de rodas dentadas metálicas. As bases das mesas, onde assentam tábuas de madeira tosca, são as mesmas da época em que o refeitório se enchia de trabalhadores. A ementa é do chefe João Macedo, ex-Masterchef, que faz uma cozinha com influências do mundo, como se percebe na sua interpretação do peruano ceviche ou das gambas Kataifi, com molho tzatziki, da Grécia. Para beber, há bons cocktails de autor: o Sand Bucket, feito com Bombay, Campari, puré de morango, papaia, maracujá e sumo de toranja (€7,50), e servido num original balde de praia. “É um dos mais tropicais e doces da lista”, diz o bartender Marco Antunes.

No restaurante Miyagi servem-se sabores asiáticos, como o pad thai e o yaki soba, com frango e camarões
Diana Tinoco
Japão e Portugal à mesa
A partir daqui, palmilha-se o novo piso do passeio ribeirinho, que teve obras de melhoramento, até se chegar ao restaurante Miyagi, inspirado na personagem da série de filmes Karate Kid, símbolo de ação dos anos 80. Serviu de inspiração ao nome e também às iguarias asiáticas que aqui se podem saborear. Nesta história, os protagonistas e proprietários António Abrantes e Bruno Rochart deixam as artes marciais para a cozinha, feita de sugestões tailandesas, chinesas e indianas. O pad thai (massa de arroz, camarão, ovo, tofu, rebentos de soja e molho à base de tamarindo), os ramens (sopas orientais que fazem as vezes de refeição) e os yaki sobas (massas) são algumas das sugestões.

É entre chapéus (vietnamitas, russos, mexicanos ou colombianos) e instrumentos musicais que se faz a decoração do restaurante O Bispo
Diana Tinoco
Em frente, a esplanada cheia do restaurante O Bispo faz-nos espreitar o interior. Acabamos à conversa com o simpático proprietário, Vítor Sarmento, que ali chegou em 2009 e manteve o nome desta antiga taberna. Antes de o olhar se fixar na ementa, aprecia-se a decoração a lembrar uma loja de antiguidades, entre coleções de instrumentos musicais (violas, gaita de foles, bandolins napolitanos…), chapéus (vietnamitas, russos, mexicanos ou colombianos) e pins (mais de 1000). Às sextas e sábados, o choco à lagareiro, o arroz de marisco, as enguias fritas e as cataplanas de cherne acompanham-se com música ao vivo e uma ligação especial a Zeca Afonso.

Vítor Sarmento, proprietário do restaurante O Bispo, é também membro da Associação Zeca Afonso
Diana Tinoco
“Esta casa é conhecida por isso mesmo”, diz Vítor Sarmento – membro da direção da Associação Zeca Afonso, sediada em Setúbal e com um núcleo no Seixal – antes de o ouvirmos cantar Redondo Vocábulo, poema que Zeca escreveu quando esteve preso em Caxias. Vítor, que também toca guitarra, diz que é preciso estar muito concentrado para conseguir interpretar bem esta obra-prima do compositor de Grândola, Vila Morena, tema para sempre associado ao 25 de Abril, que por aqui também se ouve muitas vezes. É com as suas palavras de revolução a ecoar na nossa cabeça que caminhamos em direção à Praça Luís de Camões, para conhecer a Tipografia Popular, fundada por António Palaio, em 1955. Quem nos recebe é o filho Eduardo, o grande responsável por manter o negócio a funcionar até 2006, e em seguida, por transformar esta oficina em museu. “Estive aqui a trabalhar dos 8 aos 12 anos, depois fui estudar e há 40 anos voltei à tipografia, onde fiquei até à reforma”, recorda. Fez um pouco de tudo, desde varrer o chão, apanhar papéis e aprender a caixa, onde estão as letras. Transformada num dos núcleos do Ecomuseu Municipal do Seixal, esta tipografia já não faz trabalhos para fora, mas recebe todos os visitantes, incluindo alunos de vários graus de ensino que queiram ver como se imprimia e trabalhava numa tipografia no século XV. E para recriar esta arte, Eduardo até mandou construir uma máquina de prensa, inspirada na original, inventada por Gutenberg por volta de 1450.

A Estação Náutica da Baía do Seixal, agora com melhores condições de acostagem e fundeadouro, entre outros serviços
Diana Tinoco
São precisamente três quilómetros, cerca de 40 minutos em modo de passeio, que se fazem do Núcleo Naval até à renovada Estação Náutica Baía do Seixal, agora com melhores condições de acostagem e de fundeadouro, oferecendo rampa, grua de alagem e serviço de marinheiro. É aqui que se encontra ancorado o histórico Amoroso, varino construído em 1921 e mais tarde adquirido pela Câmara Municipal do Seixal, um dos maiores barcos tradicionais ainda a navegar no Tejo. A lembrar que esta continua a ser uma terra de pescadores e descobertas, para conhecer a pé ou de barco, sem nunca perder de vista o azul do rio.
ONDE COMER
Lisboa à Vista
Um cacilheiro transformado em restaurante.
Cais da Mundet, Av. da República > T. 92 754 9107 > seg, qua-dom 11h-23h
Mundet Factory
Lg. 1. º de Maio > T. 21 242 5840 > ter-qui 12h-1h, sex-sáb 12h-2h, dom 12h-18h
Myagi
Pç. da República, 20 > T. 93 644 6969 > ter-dom 12h30- -14h20, 19h30-22h15
O Bispo
Pç. da República, 2 > T. 21 096 3942 /91 488 7468 > seg, qua 12h30-15h30, qui-sáb 20h-24h
Copofonia
Cocktails, petiscos e música ao vivo, neste bar que se divide entre o interior e a esplanada.
Pç. Luís de Camões, 54 > T. 96 876 0992 > seg-dom 21h-2h
Oficina
Neste restaurante, a especialidade é a carne, maturada ou não, servida em tábuas.
R. Manuel Teixeira de Sousa > T. 91 774 0663 > ter-qui 12h-15h, 19h-23h, sex-sáb até 2h, dom 12h-15h
Tapas ao Rio
Quinta da Fidalga, Av. da República > T. 21 807 4596 > ter-dom 12h-23h
O QUE VISITAR
Núcleo da Mundet
Lg. 1. º de Maio > T. 21 097 6112 > jun-set: ter-sex 9h-12h, 14h-17h, sáb–dom 14h30-18h30; out-mai: 12h-14h, 14h-17h, sáb-dom 14h-17h > grátis
Núcleo Naval
Av. da República > out-mai: 9h-12h, 14h-17h, sáb-dom 14h-17h; jun-set ter- -sex 9h-12h, 14h-17h, sáb-dom 14h30-18h30 > grátis
Tipografia Popular
Pç. Luís de Camões, 39-41 > T. 21 097 6112 > qua-dom 10h-12h, 14h30-17h30
Quinta da Fidalga
Av. da República 2571 > T. 21 227 5637 > ter-dom 10h-19h (verão), ter-dom 10h-17h (inverno) > grátis
Oficina de Artes Manuel Cargaleiro
Quinta da Fidalga, Av. da República > T. 21 097 6108 > jun-set: ter-sáb 10h18h; out-mai: ter-sáb 10h-17h > grátis
Varino “Amoroso”
Estação Náutica Baía do Seixal > abr-out > Os passeios no Tejo organizados pela autarquia, no âmbito do Serviço Educativo do Ecomuseu, são gratuitos mas requerem inscrição prévia.