1. Azul de Agosto
Deborah Levy
A premissa poderia acomodar um thriller clássico: a pianista Elsa M. Anderson observa alguém igual a si, a mesma gabardine verde vestida, numa feira da ladra em Atenas. Uma dupla que cobiça o objeto em que ela reparou, um par de cavalos mecânicos ativados pela corda das caudas: um detalhe onírico que dá o mote para uma perseguição (mútua?) por Atenas, Paris, Londres. Mas Levy é uma escritora incisiva, dedicada às questões de identidade, escolha e liberdade femininas. A suposta versão do tema do doppelganger evolui para uma exploração do poder das memórias suprimidas: Elsa, filha adotada de um professor, abandonou o palco a meio de um concerto. Agora, refugiada a dar aulas de música aos filhos das elites, tenta reconstruir quem é. Relógio D’Água, 496 págs., €22,90
2. O Pequeno Navio
Antonio Tabucchi
Os escritores raramente são complacentes com os primeiros livros, magnificando as imperfeições, envergonhando-se da carpintaria tosca, da cartografia mareada. Antonio Tabucchi (1943-2012) escreveu este seu segundo livro em 1978, três anos passados da estreia literária com Praça de Itália, tendo-lhe acrescentado uma nota em 2011, sinalizando pistas: “Um livro nosso que relemos é como uma verdade que tivemos a coragem de dizer imediatamente, mas ao tornar a ouvi-la tanto tempo depois receamos que tenha expirado.” Tabucchi descobriu que em O Pequeno Navio, inédito em Portugal, “as tábuas da quilha pertenciam à mesma madeira dos livros que se lhe seguiram no tempo”.
Aqui, diz, reencontra a História com maiúscula, “leviana rapariga que exibe, jubilosa, lutos e desgraças”, a história sem maiúscula de Itália, a defesa da língua, o “fenótipo” de personagens futuros – “um personagem derrotado, mas não resignado”. E a ideia de que “nós somos porque nos contamos”. Acrescentem-se-lhe melancolia, vinhetas narrativas paralelas, figuras ancoradas num certo insólito – um Sócrates filósofo que acreditava no Homem terreno, uma Ivana dita Rosa de Luxemburgo comida por vermes, uma mãe de lóbulos transparentes, povo da Toscana rural e fascistas na Abissínia, gente entre a ditadura e a resistência, entre o sonho e a memória. Tudo convocado por Sexto, ruivo e desencontrado com a poesia, um capitão que navega por um século de História italiana e pela árvore genealógica dos que, antes dele, usaram este “nome aritmético”. D. Quixote, 208 págs., €19,90
3. O Pacto da Água
Abraham Verghese
Este romance homenageia forças tectónicas: a paisagem indiana, a magnitude da Natureza, a beleza minerada nos contrastes quotidianos. O Pacto da Água pede ao leitor que mergulhe na leitura sem muitas interrupções, e sabendo que a resiliência humana será recompensada no fim. A começar pela da protagonista, matriarca cujo percurso acompanhamos por sete décadas no futuro estado de Kerala, desde que era uma menina de 12 anos na véspera do que a mãe afirma ser “o pior dia na vida de uma mulher”: o casamento arranjado com um viúvo de 40 anos, de uma família amaldiçoada em que, a cada geração, alguém morre nas águas. O resto são descendentes, desafios (há um médico escocês que se descobre opressor na Índia), destinos. Porto Editora, 736 págs., €22,20
4. Templos da Alegria
Kate Atkinson
Retrato soberbo, num galope narrativo com saltos temporais, da Londres decadente a pedir meças à joie de vivre parisiense no pós-I Guerra Mundial, Templos da Alegria é a descrição dos bas fond cuja lei única era o divertimento, regado a champanhe e música de ragtime. Um potpourri sociológico, com príncipes, banqueiros, artistas, expatriados, cortesãs, criminosos, heróis tresmalhados, todos a dançarem no clube Amethyst de Nellie Coker, madame acabada de sair da prisão, com uma prole de seis filhos que são uns Bórgia domesticados. Kate Atkinson acrescenta-lhes realismo histórico e um tema contemporâneo: para onde vão as raparigas que andam a desaparecer? O mistério vai ser investigado pelo inspetor-chefe Frobisher e sua infiltrada. Asa, 496 págs., €22,90
5. A Borra do Café
Mario Benedetti
De leitura mansa como um rio, A Borra do Café funciona como uma photomaton existencial: a de Cláudio, desde que é um miúdo a saltar de cidade em cidade até desembocar e crescer e jogar futebol no bairro de Capurro, na cidade de Montevideu, até à sua idade adulta, homem ziguezagueando entre os círculos esclarecidos do design e outras ocupações modernas, mas assombrado por eventos como o da largada das bombas atómicas em Hiroxima e em Nagasaki. E é igualmente um elegante exercício, ilusoriamente simples, sobre as memórias, ou os resquícios existenciais, que ditam a sorte de cada pessoa.
Há alusões a acasos, coisas sobrenaturais, golpes de sorte, fortuna ao jogo, que pontuam esta história. Mas, na prática, o uruguaio Mario Benedetti (1920-2009) discorre, com limpidez narrativa e provavelmente alguma autobiografia, sobre as experiências catárticas que nos transformam em adultos: o desenraizamento; a descoberta do amor, o idealizado e o real; o confronto com a morte; a descoberta de sentido. Diz-lhe o tio Edmundo, quando Cláudio sente culpa pela sua boa sorte num mundo em conflito: “Quando finalmente chegas à conclusão de que o mundo é enorme e de que o teu mundo é pequenino, começas a recuperar o equilíbrio, bah!, aquele bocadinho de equilíbrio que nos calhou e que não devemos delapidar.” Cavalo de Ferro, 192 págs., €16,45
6. A Forasteira
Olga Merino
Há toda uma sugestão de cinema mental a funcionar durante a leitura deste romance, sabendo-se que tem sido caracterizado como um western contemporâneo. O cenário é a Andaluzia, quase devolvida a tempos ancestrais devido à pobreza e à desertificação. O guião explora as guerras causadas pela posse do duríssimo território, e pela obliteração da lei. A anti-heroína, Angie, vive solitária num barraco que já conheceu melhores dias, apenas acompanhada por dois cães e as memórias de um amor de juventude. É esta personagem que vai ser forçada a entrar num confronto desigual, após descobrir o corpo do latifundiário da terra enforcado numa nogueira. O desfecho deste romance, escrito por uma ficcionista e jornalista nascida em Barcelona, vai ser decidido com as armas da memória. Quetzal, 224 págs., €17,70
7. Além da Memória
Sebastian Barry
Ao 11.° romance, este escritor virtuoso regressa à terra natal, a Irlanda, enfrentando um tema tabu. Melhor dizendo, Barry encarrega-se de esboroar, sob o pretexto ficcional, as camadas do silêncio e da memória associadas aos traumas causados pelos abusos sexuais a crianças infligidos pelos padres católicos no país. É enganador que o fio narrativo assuma inicialmente a forma de uma investigação policial: Tom Kettle, um agente reformado a tentar gerir as perdas da mulher e dos dois filhos, vive num castelo junto à costa a cuja porta batem dois ex-colegas polícias a pedirem ajuda na resolução de um antigo caso que envolve uma figura do clero. A História está impregnada de nevoeiros, fantasias e emoções que tornam o chão das memórias cada vez mais escorregadio. Relógio D’Água, 248 págs., €20